segunda-feira, 7 de junho de 2010

Vai se foder, Fellini

- Então?
- Para lá.
- Como você é linda. Fico até sem jeito, como um adolescente. (...) Não acredita que transmite um respeito verdadeiro, profundo? Claudia, por quem está apaixonada? Com quem está? De quem você gosta?
- De você.
- Você chegou bem a tempo...Por que sorri assim? Não se sabe se está julgando ou absolvendo, se está me gozando...
- Estou escutando. Você ia me falar sobre o filme. Eu não sei de nada.
- (suspiro) Você seria capaz de recomeçar sua vida do zero? Escolher só uma coisa e ser fiel a ela, fazer dela a razão de sua existência? Uma coisa que se torne tudo, pois a sua fé a torna assim? Você seria capaz? Por exemplo, se eu dissesse...Claudia...
- Para que lado eu vou? Não conheço o caminho. E você, seria capaz?
- Devemos estar perto da nascente, está ouvindo? Vire aqui. (...) Não, este tipo não é capaz. Ele quer ficar com tudo. Não sabe renunciar a nada; Muda todo dia de caminho por medo de escolher. E está morrendo à míngua.
- E o filme termina assim?
- Não, começa assim. Depois ele encontra a garota da fonte, uma das que servem água. Ela é linda. Jovem e antiga, menina e já mulher, autêntica, solar. Não há dúvida, ela é a sua salvação.  Você estará de branco, com esses mesmos cabelos longos. Apague os faróis.
(-----)
- E depois?... Vamos embora daqui. Este lugar me impressiona. Não me parece real.
- Pois eu gosto muito dele, veja só.
- Não entendi quase nada dessa sua história. Um tipo como o que você descreveu, que não ama ninguém, não causa muita pena, sabia? No fundo, a culpa é dele. O que ele espera dos outros?
- Acha que não sei disso? Você também me aborrece.
- Ah, você não agüenta críticas, não é? Está engraçado com esse chapéu e a expressão de velho...Não entendo. Ele acha a garota que pode devolver-lhe a vida e a rejeita?
- Porque não acredita mais.
- Porque não sabe amar.
- Porque não é verdade que uma mulher possa mudar um homem..
- Porque não sabe amar.
- E sobretudo porque não quero outra história mentirosa.
- Porque não sabe amar.
- Lamento ter feito você vir até aqui, Claudia. Peço desculpas.
- Que canalha você é. Então esse papel não existe?
- Você tem razão. O papel não existe. Nem o filme existe. Não existe nada em parte alguma.  Para mim, o caso poderia se encerrar aqui.

Marcello Mastroianni e Claudia Cardinale - Fellini 8 e 1/2

Eu não sei vocês, amiguinhos, mas se eu conseguisse fazer isso, contar a história de uma vida em um diálogo de uma página, com tantas sutilezas, entrelinhas e camadas, eu teria menos angústias na vida. E pensar que o filho da puta escreveu este filme após uma "crise de inspiração". Na boa, Fellini, fica aqui o meu mais sincero VAI SE FODER.


 (termino com a Claudia, pra amenizar)

sábado, 5 de junho de 2010

De los Deseos (estudios acerca de mi país)

   Deseos. Aunque no los creo, o si me convenzo a vencerlos, sé que hemos que tenerlos, y siempre habrá  cosas a desear. Algunos, sí, tan feos,  así como devaneos que no logramos evitar.

   Pues yo también, en mi tiempo, he deseado todo lo que pude. Que no se me deshagan los recuerdos y arrepentimientos que en mi se funden, pues soy  lo que me han hecho los dos, con igual amplitud.

    Y  que no se olviden de mí las chicas de mi juventud, y mis amigos de tantos vasos erguidos, que es con gratitud que me acuerdo todo lo que hemos vivido.

   Y que no me deje el deseo, o quizá esperanza, de siempre intentar ser feliz. Quiero que yo no deje de estar contento con las pequeñas cosas de mi país. Espero que yo escuche, todavía y siempre, aunque que lejano, casi ausente, a un bienteveo cantar.

   Ojalá no me olvide porque son buenos los domingos soleados, el futbol jugado con maestría, y el samba que nos invita a bailar. Y sí, por supuesto, que haya en cada esquina un bar.

   Que no pierda mi guitarra su llanto, y que nunca me falte mi canto, a pesar de los oídos que lo puedan escuchar.

   Quiero que no se acaben los estribillos de los feriantes, los carnavales en las calles, los desayunos en panaderías, que no se acaben las alegrías de un pueblo que insiste en sonreír.  y que no pensemos que lo mejor era lo de antes, sino que lo mejor aún está por venir.

   Que yo pueda siempre quedarme en una playa, a mirar las faldas que cubren  las piernas coloreadas por el sol, que no dejarán nunca de venir.  Los colores de mi bandera,  la estrella de la vida entera, es sobre esto que quiero escribir.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Drops

   Acabei de encontrá-la no elevador. A menina bonitinha do 4º andar. Eu entrei no elevador no subsolo – estacionamento. Ele parou no térreo e eu fiquei puto, porque detesto dividir espaço. Eu estava recostado na quina, entre o espelho e a parede lateral, e foi tão de repente que nem tive tempo de acertar a postura. Ela parou bem perto de mim e me disse oi pertinho do meu rosto. Foi tão de repente que eu nem tive tempo de engrossar a voz, e falei um oi baixinho e com a voz meio fina.
Eu não a via há meses, desde que dividimos o elevador pela última vez. Eram seis e meia da manhã, eu estava indo pro trabalho, naquele estado de torpor meio letárgico das horas acinzentadas. Ela entrou sorridente, e disse “Oi, há quanto tempo não nos víamos”. (só havíamos nos cruzado umas duas vezes). Eu, assustado com a pergunta em si, espantado pela sua alegria e desenvoltura, e ainda dopado de sono, não consegui dizer nada espirituoso.
   Mas hoje,à noite, véspera de feriado, eu estou no auge das minhas faculdades mentais, e mesmo assim não consegui dizer nada que prestasse, nem ela puxou nenhum assunto – não que ela devesse.
   A subida dos quatro andares foi rápida demais.
   A porta do elevador se abriu, e ela – ainda pertinho do meu rosto, disse tchau, e nos olhamos bem nos olhos um do outro. Apesar da tensão quase palpável no cubículo, aquela atração que se sente e se espera recíproca, foi só o que dissemos, um oi e tchau meio tímidos de se estenderem como gostariam. Eu a vi caminhando até a porta de seu apartamento, a olhei de cima a baixo, e gostei do que vi. Quis que ela olhasse pra trás, pra eu me sentir num filme, mas ela não o fez.
   Subi o restante dos andares me odiando menos do que pensei que fosse. Cheguei em casa meio tonto, abri uma cerveja, abri a janela, acendi um cigarro, e estou aqui, tentando encontrar a ironia da vida que sempre me escapa. Quando e se a encontrar, vou sorrir aquele sorriso metade satisfeito, metade dolorido, de quem entendeu ou aceitou.
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   Era o segundo ano de faculdade, e todo mundo sabe como é isso. Gente que a gente não conhece há tanto tempo assim, tempo que a gente acha que é pra sempre, e sempre aquele sensação esquisita de que se está fingindo que sente ou é o que não é. Uma festa na chácara de alguém, todo mundo sabe bem, todo lugar tem.
   Aquela hora intermediária, quando as pessoas começam a ficar bêbadas, as conversas começam a ficar diferentes, e a gente começa a falar mais do que o normal. E há sempre aquele casal.
   Ele está perto da churrasqueira, falando com as pessoas. Ela está por aí também. Ela vem e o abraça, meio do nada, eles se afastam um pouco. Ela quase nunca faz isso, abraçar desse jeito, e ele gosta. Gosta do cheiro do cabelo dela quando ficam assim, a cabeça dela encostada em seu ombro. Gosta da cintura fina dela, e de como o corpo dela, magro como um passarinho, é envolvido pelo peito largo dele. O abraço se demora, ele suspira fundo, e apertando ela um pouquinho mais forte, diz “ Quando você me abraça assim, do nada, eu gosto mais do mundo.” Ela aperta um pouco mais o abraço, ou nem isso, apenas se demora um pouquinho mais do que pretendia. E pensa “Eu bem que poderia encontrar um jeito de gostar dele de verdade”.

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   Quando eu a vi, novamente, depois de tanto tempo, sabendo de tudo, tocou Say Goodbye na minha cabeça. E isto foi o mais próximo que chegamos de um romance. 

You´re not our crowd


Listen to that music, Chuck. It´s a carnival! Doesn´t that do something to you? Listen…It´s a beautiful evening, Chuck. The air is warm, the sky is filled with stars…and I got a whole pocket full of tickets to the carnival. Come on, let´s go!
Listen! People are laughing, Chuck. They´re having a good time. You can´t let yourself get into a mood like this. I know you miss your dog.  I miss him too. But if you let yourself get into a mood, no one will want to be around you. No one likes a moody person, Chuck. Take it from me. I learned a long time ago that if you go around in a mood feeling sorry for yourself you do it alone. And I mean alone, Chuck.
(…)

I don´t know. I´ve seen people get sick on merry go rounds and ferries wheels and roller coasters, but you´re the first person I´ve seen get sick going through the turn stile!
We´re having a good time, aren´t we, Chuck?

Does your kind ever think about love, Chuck?
-          What do you mean, my kind?
I´m sorry. I didn´t mean to put it that way. No offense. I apologize. Friends?
You touched my hand, Chuck.
You kinda like being with me, don´t you, Chuck?
What do you think love is, Chuck?
-          Well, years ago, my dad owned a black 1934 two-door sedan.
What´s that got to do with love?
-          Well, this is what he told me. There was a real cute girl, see? She used to go for rides with him in his car, and whenever he called for her, he would always hold open the car door for her. After she got in and he had closed the door, he´d walk around the back of the car, to the driver´s side, but before he could get there, she would reach over and press the button, locking him out. Then, she´d just sit there and wrinkle her nose and grin at him. That´s what I think love is.
Sometimes I worry about you, Chuck. 

Snoopy Come Home - 1972

sexta-feira, 19 de março de 2010

Das compaixões à segunda vista

A sensação é a mesma. Não que seja confortável, nunca foi, mas é familiar. O copo na mão, a posição medida e dura de todos os dedos, a barriga encolhida, um pouco pela postura, um pouco pelo medo. Nada disso é espontâneo, nem o sorriso ou o cigarro, mas não chega a ser ensaiado, é apenas construído com cuidado. Ouvir atentamente às conversas, fingir que não, usar a voz mais grave, gravar o que interessa , fingir não ter pressa, fugir, até que ela apareça. Edgar está numa festa, e não percebe nada ainda, mal vê as pessoas em volta, mas a sensação, construída ou constatada, ainda é a mesma.
E ela vem, como uma oração. Tem em si algo de desespero, algo de salvação. Traz na mão um copo, bebe num gesto pausado, e Edgar sabe que já foi tomado. Edgar já a conhece, desde antes do que é capaz de se lembrar, já a viu com vários rostos, em vários lugares, de várias formas, com vários olhares, e nada importa, porque a sensação é sempre a mesma, e é por ela que ele espera todas as noites. Ela aparece em meio à multidão da festa, sorri pra ele, e Edgar reconhece aquele sorriso, e se reconforta, com o alívio de quem encontrou o que buscava sem saber exatamente o objeto de sua busca. O sorriso dela não é mero repuxar de músculos, é como uma volta ao lar.

Edgar caminha em direção a ela, sem pressa, porque sabe que agora que a encontrou tem todo o tempo do
HERE COME OLD FLATTOP, HE COME
GROOVING UP SLOWLY, HE GOT
JOO-JOO EYEBALL, HE ONE
HOLLY ROLLER, HE GOT
HAIR DOWN TO HIS KNEE, a mão pesadamente refaz o gesto condicionado e interrompe os Beatles, desligando o despertador. Edgar vira de lado na cama e estranha o quarto ainda escuro. Ainda não são sete horas da manhã e ele ainda não se acostumou com o horário de verão, que mudou há pouco tempo. Reúne forças e num suspiro atira o lençol para os pés. Se senta, os olhos ainda semicerrados e os pés descalços estranhando o contato do tapete. Suspira outra vez, hoje vai ser um bom dia, pensa imperativamente, hoje não vou me irritar, pensa com menos ordem que esperança, tudo vai dar certo. Levanta e abre a janela, o horizonte está lilás, e ele gosta.

Acende a luz do banheiro e tenta acostumar os olhos à claridade, lava o rosto, vai até a cozinha e liga a cafeteira preparada na noite anterior. Abre a porta da sacada para deixar entrar o ar frio, para no meio da sala e se alonga pra espantar o sono, pescoço, ombros, braços, pernas e coluna. Pega uma xícara de café e bebe rápido. O banho é denso e nebuloso, e apesar dos pensamentos ainda estarem confusos, Edgar tenta se lembrar do que precisa fazer hoje no trabalho. Escolhe a roupa sem muito critério, enquanto toma outra xícara de café, arruma o cabelo superficialmente, sem muito esmero, se olha no espelho uma última vez, resolve trocar de sapatos. Quando termina de se aprontar, para no meio do quarto, abaixa a cabeça e reza como sua mãe lhe ensinou há muito tempo, pede pra que tenha paciência e serenidade, e pra que tenha um bom dia no trabalho. Pega sua mochila e sai, deixando a casa ainda escura e silenciosa.

O elevador para no sétimo andar e Edgar quase pragueja mas se contém a tempo, sorri para a mulher que entra com duas crianças vestindo uniforme da escola. Quando a porta do elevador se abre novamente, Edgar diz bom dia num sussurro entre dentes, mal os olha , entra no carro e não consegue se decidir que música quer ouvir, coloca os óculos escuros, mesmo sem o sol ter aparecido por completo. Acena pro porteiro, ganha a rua e tenta conter sua vontade de acelerar demais.

O caminho é o mesmo de sempre, os faróis onde ele para são os mesmos de sempre, com os mesmos vendedores de balas e flanelas que penduram as embalagens plásticas com um bilhete dentro, deixando à vista as mesmas mensagens otimistas no retrovisor. Edgar as lê e concorda com elas o suficiente para sorrir para o vendedor, mas não o bastante para comprar as balas. O trecho da rodovia que ele precisa pegar porque trabalha longe está cheio de carros como sempre, e o trânsito para nos mesmos lugares.

E é nestes momentos, parado, preso no meio da longa fila de veículos, que Edgar observa o canteiro central da rodovia, longo e gramado. Observa algumas pessoas que passam correndo por este canteiro, vestindo moletom, bonés, tênis de corrida, alguns com fones de ouvido, e Edgar se pergunta por que razão escolheriam tal lugar para praticarem suas corridas matinais, um estreito corredor de grama entre duas grandes vias de asfalto com todas as suas pistas abarrotadas de carros e caminhões cuspindo monóxido de carbono direto para o pulmão arfante desses corredores. Depois pensa que, por menos sábia que seja esta contraditória escolha, um ato saudável em um ambiente tão pouco salutar, talvez não disponham de nenhum outro local adequado que seja mais perto de suas casas, e termina por sentir compaixão desses pobres atletas do meio fio.

O trânsito anda mais um pouco, mas logo em frente já há outra parada, é um acidente envolvendo uma garota num carro e um motoboy, mas parece não ser nada grave, não há ambulâncias nem gente caída, apenas uma das faixas da rodovia foi interditada pelos guardas de trânsito, e a lentidão é causada mais pelos motoristas que desaceleram interessados em ver detalhes da cena do que a pista a menos para trafegar. Edgar tenta passar sem dar atenção demasiada às pessoas que estão paradas em volta da moto caída, supostamente envolvidas no acidente, pois sabe que o que menos precisam é de mais um olhar curioso a lhes julgar, a ter pena de seu infortúnio ou a maldizer a situação.

O tráfego flui novamente, mas somente para parar de novo dali a alguns minutos, e desta vez Edgar nota um casal de quero-queros no meio do canteiro central, e se pergunta por que razão estas aves escolheriam tal lugar para fazerem seu ninho e botarem seus ovos, um lugar aparentemente tão inóspito. Depois pensa que, por menos sábia que essa escolha pareça aos seus olhos, talvez não tenham achado nenhum outro local mais adequado em meio ao concreto que se estende por quilômetros em volta, e por qualquer que seja a razão pela qual os pássaros se encontrem ali, termina por sentir compaixão dessas pobres aves sem habitat.

Mais uma vez o trânsito volta a andar, e desta vez parece que vai seguir sem outras paradas, no ritmo lento de uma manhã de um dia útil em São Paulo. Edgar abre mais o vidro do carro e aumenta o volume do rádio, quer cantar mas ainda não conhece bem a música que está tocando, é uma das que ele baixou há pouco tempo, pra conhecer. Está na faixa da esquerda e anda bem, desenvolve boa velocidade considerando o horário e lugar onde está. E é assim, mais um no fluxo de veículos que segue o ritmo que é permitido pelo volume de carros neste momento, que ele vê, ao seu lado, um cachorrinho assustado andando no canteiro central.

Como ele passa relativamente rápido, mal consegue ver o animalzinho, mas consegue perceber sua feição de desespero, as costas curvadas de medo, o rabo entre as pernas trêmulas, as orelhas baixas, o passo desencontrado entre os dois leitos de incessante movimento, o cãozinho anda rápido sem saber que direção seguir, e antes de perdê-lo de vista, Edgar nota ainda que está arrepiado o seu curto pêlo branco, ou melhor, que já fora branco, mas que agora é quase bege, caramelo, imundo de barro, sujo de rua e abandono, e quando o bichinho sai do campo de visão de seu retrovisor, Edgar já está quase sem ar, e um calafrio, gelado, lhe percorre da cabeça até a ponta dos pés quando pensa que o cachorro certamente morrerá atropelado se permanecer ali, e em menos de um segundo, ele tem tempo ainda de se dar conta de que é apenas um filhote. Edgar sente o sangue lhe faltar na face, e instantaneamente dá seta pra direita, ao mesmo tempo em que seu olhar se fixa no retrovisor direito e ele vai jogando seu carro em frente aos veículos das outras faixas, e mal ouvindo os barulhos agudos das freadas e as buzinas que guincham cada vez mais altas, em um coro caótico, consegue atravessar as três pistas da rodovia, até chegar à última, sobe o meio fio, para em cima da calçada, e sem pensar liga o pisca alerta, solta o cinto de segurança, tira a chave do contato, abre a porta e trava o alarme.

Sentindo a força lhe faltar nas pernas, Edgar estende a mão e vai pouco a pouco se colocando em frente aos carros que passam velozes, tentando olhar nos olhos dos motoristas para que sua expressão os convença a ter um pouco de compreensão e cordialidade, mesmo que não saibam por quê, e desse modo, correndo, desviando dos veículos que brecam bruscamente, consegue atravessar todas as pistas e chegar à parte gramada.

Quando enfim chega ao gramado, começa a correr no sentido contrário de onde estava vindo, dando o máximo de si, sem notar os olhares estarrecidos dos motoristas que passam velozes ao seu lado, a se perguntarem porque diabos aquele rapaz de camisa, calça e sapatos corre com tão desesperada feição naquele improvável lugar. O cachorrinho se volta para Edgar, ainda a alguns metros de alcançá-lo, e corre de encontro a ele, não como um animal de estimação corre para seu dono quando este chega em casa, mas de modo apenas instintivo, um filhote buscando a única possível salvação que seu raso raciocínio lhe permite avaliar. Edgar se ajoelha no chão de terra, pega o animalzinho e o pousa sobre suas coxas, sentindo em suas mãos o batimento acelerado de seu pequeno coração. Aperta o bicho contra o peito e permanece assim por alguns minutos, até que o cachorro e ele se acalmem.

Edgar se levanta, segurando o cachorro em um braço, e o filhote agora repousa a cabeça sobre seu ombro, e com a mão livre Edgar vai de novo abrindo caminho entre os automóveis que reduzem a velocidade, incrédulos com a cena com a qual se deparam. Chega à outra calçada, acomoda melhor o bicho em seu colo, e anda devagar pela rua perpendicular à rodovia, em meio ao olhar de estranheza de dois ou três transeuntes, até chegar ao fim do quarteirão. Ao chegar à esquina, dá numa pequenina praça, pequeno triângulo gramado, apenas um banco e três árvores, encruzilhada entre três ruas calmas, nem parece que a poucos metros há uma rodovia em pleno horário de pico.
Abaixa-se e coloca o cachorrinho no chão, que anda em círculos e começa a cheirar o gramado. Ainda tem os gestos assustados, treme a cada ruído mais alto da rua, olha tudo ao seu redor, e se seus pequenos olhos já não mostram o pânico que mostravam há pouco, ainda há neles um brilho de medo e desamparo.

Edgar suspira fundo, olha em volta e pondera. Não há nada em volta a não ser muros de fábricas. Gostaria de dar de comer ao cãozinho, gostaria mais ainda de levá-lo até sua casa e cuidar dele por toda a vida, olha sua cara de pêlos curtos e desgrenhados, que lhe dá uma aparência feia e ao mesmo tempo simpática. Mas sabe que não pode fazê-lo, já está atrasado pro trabalho, tem muito o que fazer hoje, e além do mais, mal para em casa, manter um animal, com sua rotina, seria crueldade. Afaga a cabeça do cão, atrás de suas orelhas, pensa que talvez tenha pulgas, mas não tira a mão tão logo. Olha em volta outra vez, resigna-se, e começa a andar de volta pra onde deixou seu carro. O cãozinho o segue, Edgar para, bate o pé no chão pra que ele se afaste, o cachorro se assusta e para, inclinando um pouco a cabeça e olhando pra ele. Edgar volta a andar e o cãozinho volta a segui-lo, Edgar fala alto, passa, vai cuidar da tua vida, o cãozinho para e fica olhando pra ele, abre a boca e deixa pender a língua. Edgar tenta andar outra vez, o cachorro volta a segui-lo, Edgar morde os lábios, bate o pé com força no chão, dá um tapa na anca do cãozinho, que com o golpe volta a andar com as costas curvadas e o rabo entre as pernas e começa se distanciar. Antes de virar a esquina, Edgar olha pra trás, e vê o filhote sentado embaixo da árvore, olhando pra ele. O cãozinho ergue as orelhas, Edgar respira fundo, dá as costas, volta a caminhar e vira a esquina. Anda até seu carro e toma novamente a rodovia.

Dirige sem pensar em nada por alguns quilômetros, até que um espasmo lhe sobe do estômago até a garganta e termina num gemido surdo, e soltando o ar, Edgar começa a chorar copiosamente, fecha os vidros, desliga o rádio, cerra o maxilar entre seu punho, as lágrimas lhe escorrem gordas pelo rosto até pingarem de seu queixo e molharem sua camisa, e ele geme alto e descompassado. Com uma mão ao volante, Edgar segue deste modo por mais alguns quilômetros, e mesmo sem conseguir conter seu choro, se esforça para que nenhum motorista que pare ao seu lado porventura perceba o que está acontecendo com ele.

A poucas quadras antes de chegar ao escritório onde trabalha, Edgar respira fundo, enxuga o rosto com as costas das mãos, e retoma sua compostura. Entra com o carro no mesmo prédio de todas as manhãs, desliga o motor e abre a porta, sorrindo para o manobrista. Passa pela porta automática, cumprimenta o porteiro, passa pela catraca, aperta o botão do elevador. Ele chega, Edgar segura a porta para uma senhora que está entrando, lhe diz bom dia sorrindo, e desce em seu andar. O cheiro do carpete do escritório é o mesmo. Sorridente, Edgar cumprimenta a recepcionista com um gracejo, chega até sua mesa, se senta e liga seu computador. Enquanto espera ele iniciar, olha pela janela, vê a paisagem de todos os dias, familiar. Apóia os cotovelos na mesa, junta as mãos fechadas sob o queixo, a posição medida e dura de todos os dedos. Encolhe a barriga, um pouco por postura, um pouco por medo. Por mais desconfortável que seja, a sensação ainda é a mesma.