sexta-feira, 19 de março de 2010

Das compaixões à segunda vista

A sensação é a mesma. Não que seja confortável, nunca foi, mas é familiar. O copo na mão, a posição medida e dura de todos os dedos, a barriga encolhida, um pouco pela postura, um pouco pelo medo. Nada disso é espontâneo, nem o sorriso ou o cigarro, mas não chega a ser ensaiado, é apenas construído com cuidado. Ouvir atentamente às conversas, fingir que não, usar a voz mais grave, gravar o que interessa , fingir não ter pressa, fugir, até que ela apareça. Edgar está numa festa, e não percebe nada ainda, mal vê as pessoas em volta, mas a sensação, construída ou constatada, ainda é a mesma.
E ela vem, como uma oração. Tem em si algo de desespero, algo de salvação. Traz na mão um copo, bebe num gesto pausado, e Edgar sabe que já foi tomado. Edgar já a conhece, desde antes do que é capaz de se lembrar, já a viu com vários rostos, em vários lugares, de várias formas, com vários olhares, e nada importa, porque a sensação é sempre a mesma, e é por ela que ele espera todas as noites. Ela aparece em meio à multidão da festa, sorri pra ele, e Edgar reconhece aquele sorriso, e se reconforta, com o alívio de quem encontrou o que buscava sem saber exatamente o objeto de sua busca. O sorriso dela não é mero repuxar de músculos, é como uma volta ao lar.

Edgar caminha em direção a ela, sem pressa, porque sabe que agora que a encontrou tem todo o tempo do
HERE COME OLD FLATTOP, HE COME
GROOVING UP SLOWLY, HE GOT
JOO-JOO EYEBALL, HE ONE
HOLLY ROLLER, HE GOT
HAIR DOWN TO HIS KNEE, a mão pesadamente refaz o gesto condicionado e interrompe os Beatles, desligando o despertador. Edgar vira de lado na cama e estranha o quarto ainda escuro. Ainda não são sete horas da manhã e ele ainda não se acostumou com o horário de verão, que mudou há pouco tempo. Reúne forças e num suspiro atira o lençol para os pés. Se senta, os olhos ainda semicerrados e os pés descalços estranhando o contato do tapete. Suspira outra vez, hoje vai ser um bom dia, pensa imperativamente, hoje não vou me irritar, pensa com menos ordem que esperança, tudo vai dar certo. Levanta e abre a janela, o horizonte está lilás, e ele gosta.

Acende a luz do banheiro e tenta acostumar os olhos à claridade, lava o rosto, vai até a cozinha e liga a cafeteira preparada na noite anterior. Abre a porta da sacada para deixar entrar o ar frio, para no meio da sala e se alonga pra espantar o sono, pescoço, ombros, braços, pernas e coluna. Pega uma xícara de café e bebe rápido. O banho é denso e nebuloso, e apesar dos pensamentos ainda estarem confusos, Edgar tenta se lembrar do que precisa fazer hoje no trabalho. Escolhe a roupa sem muito critério, enquanto toma outra xícara de café, arruma o cabelo superficialmente, sem muito esmero, se olha no espelho uma última vez, resolve trocar de sapatos. Quando termina de se aprontar, para no meio do quarto, abaixa a cabeça e reza como sua mãe lhe ensinou há muito tempo, pede pra que tenha paciência e serenidade, e pra que tenha um bom dia no trabalho. Pega sua mochila e sai, deixando a casa ainda escura e silenciosa.

O elevador para no sétimo andar e Edgar quase pragueja mas se contém a tempo, sorri para a mulher que entra com duas crianças vestindo uniforme da escola. Quando a porta do elevador se abre novamente, Edgar diz bom dia num sussurro entre dentes, mal os olha , entra no carro e não consegue se decidir que música quer ouvir, coloca os óculos escuros, mesmo sem o sol ter aparecido por completo. Acena pro porteiro, ganha a rua e tenta conter sua vontade de acelerar demais.

O caminho é o mesmo de sempre, os faróis onde ele para são os mesmos de sempre, com os mesmos vendedores de balas e flanelas que penduram as embalagens plásticas com um bilhete dentro, deixando à vista as mesmas mensagens otimistas no retrovisor. Edgar as lê e concorda com elas o suficiente para sorrir para o vendedor, mas não o bastante para comprar as balas. O trecho da rodovia que ele precisa pegar porque trabalha longe está cheio de carros como sempre, e o trânsito para nos mesmos lugares.

E é nestes momentos, parado, preso no meio da longa fila de veículos, que Edgar observa o canteiro central da rodovia, longo e gramado. Observa algumas pessoas que passam correndo por este canteiro, vestindo moletom, bonés, tênis de corrida, alguns com fones de ouvido, e Edgar se pergunta por que razão escolheriam tal lugar para praticarem suas corridas matinais, um estreito corredor de grama entre duas grandes vias de asfalto com todas as suas pistas abarrotadas de carros e caminhões cuspindo monóxido de carbono direto para o pulmão arfante desses corredores. Depois pensa que, por menos sábia que seja esta contraditória escolha, um ato saudável em um ambiente tão pouco salutar, talvez não disponham de nenhum outro local adequado que seja mais perto de suas casas, e termina por sentir compaixão desses pobres atletas do meio fio.

O trânsito anda mais um pouco, mas logo em frente já há outra parada, é um acidente envolvendo uma garota num carro e um motoboy, mas parece não ser nada grave, não há ambulâncias nem gente caída, apenas uma das faixas da rodovia foi interditada pelos guardas de trânsito, e a lentidão é causada mais pelos motoristas que desaceleram interessados em ver detalhes da cena do que a pista a menos para trafegar. Edgar tenta passar sem dar atenção demasiada às pessoas que estão paradas em volta da moto caída, supostamente envolvidas no acidente, pois sabe que o que menos precisam é de mais um olhar curioso a lhes julgar, a ter pena de seu infortúnio ou a maldizer a situação.

O tráfego flui novamente, mas somente para parar de novo dali a alguns minutos, e desta vez Edgar nota um casal de quero-queros no meio do canteiro central, e se pergunta por que razão estas aves escolheriam tal lugar para fazerem seu ninho e botarem seus ovos, um lugar aparentemente tão inóspito. Depois pensa que, por menos sábia que essa escolha pareça aos seus olhos, talvez não tenham achado nenhum outro local mais adequado em meio ao concreto que se estende por quilômetros em volta, e por qualquer que seja a razão pela qual os pássaros se encontrem ali, termina por sentir compaixão dessas pobres aves sem habitat.

Mais uma vez o trânsito volta a andar, e desta vez parece que vai seguir sem outras paradas, no ritmo lento de uma manhã de um dia útil em São Paulo. Edgar abre mais o vidro do carro e aumenta o volume do rádio, quer cantar mas ainda não conhece bem a música que está tocando, é uma das que ele baixou há pouco tempo, pra conhecer. Está na faixa da esquerda e anda bem, desenvolve boa velocidade considerando o horário e lugar onde está. E é assim, mais um no fluxo de veículos que segue o ritmo que é permitido pelo volume de carros neste momento, que ele vê, ao seu lado, um cachorrinho assustado andando no canteiro central.

Como ele passa relativamente rápido, mal consegue ver o animalzinho, mas consegue perceber sua feição de desespero, as costas curvadas de medo, o rabo entre as pernas trêmulas, as orelhas baixas, o passo desencontrado entre os dois leitos de incessante movimento, o cãozinho anda rápido sem saber que direção seguir, e antes de perdê-lo de vista, Edgar nota ainda que está arrepiado o seu curto pêlo branco, ou melhor, que já fora branco, mas que agora é quase bege, caramelo, imundo de barro, sujo de rua e abandono, e quando o bichinho sai do campo de visão de seu retrovisor, Edgar já está quase sem ar, e um calafrio, gelado, lhe percorre da cabeça até a ponta dos pés quando pensa que o cachorro certamente morrerá atropelado se permanecer ali, e em menos de um segundo, ele tem tempo ainda de se dar conta de que é apenas um filhote. Edgar sente o sangue lhe faltar na face, e instantaneamente dá seta pra direita, ao mesmo tempo em que seu olhar se fixa no retrovisor direito e ele vai jogando seu carro em frente aos veículos das outras faixas, e mal ouvindo os barulhos agudos das freadas e as buzinas que guincham cada vez mais altas, em um coro caótico, consegue atravessar as três pistas da rodovia, até chegar à última, sobe o meio fio, para em cima da calçada, e sem pensar liga o pisca alerta, solta o cinto de segurança, tira a chave do contato, abre a porta e trava o alarme.

Sentindo a força lhe faltar nas pernas, Edgar estende a mão e vai pouco a pouco se colocando em frente aos carros que passam velozes, tentando olhar nos olhos dos motoristas para que sua expressão os convença a ter um pouco de compreensão e cordialidade, mesmo que não saibam por quê, e desse modo, correndo, desviando dos veículos que brecam bruscamente, consegue atravessar todas as pistas e chegar à parte gramada.

Quando enfim chega ao gramado, começa a correr no sentido contrário de onde estava vindo, dando o máximo de si, sem notar os olhares estarrecidos dos motoristas que passam velozes ao seu lado, a se perguntarem porque diabos aquele rapaz de camisa, calça e sapatos corre com tão desesperada feição naquele improvável lugar. O cachorrinho se volta para Edgar, ainda a alguns metros de alcançá-lo, e corre de encontro a ele, não como um animal de estimação corre para seu dono quando este chega em casa, mas de modo apenas instintivo, um filhote buscando a única possível salvação que seu raso raciocínio lhe permite avaliar. Edgar se ajoelha no chão de terra, pega o animalzinho e o pousa sobre suas coxas, sentindo em suas mãos o batimento acelerado de seu pequeno coração. Aperta o bicho contra o peito e permanece assim por alguns minutos, até que o cachorro e ele se acalmem.

Edgar se levanta, segurando o cachorro em um braço, e o filhote agora repousa a cabeça sobre seu ombro, e com a mão livre Edgar vai de novo abrindo caminho entre os automóveis que reduzem a velocidade, incrédulos com a cena com a qual se deparam. Chega à outra calçada, acomoda melhor o bicho em seu colo, e anda devagar pela rua perpendicular à rodovia, em meio ao olhar de estranheza de dois ou três transeuntes, até chegar ao fim do quarteirão. Ao chegar à esquina, dá numa pequenina praça, pequeno triângulo gramado, apenas um banco e três árvores, encruzilhada entre três ruas calmas, nem parece que a poucos metros há uma rodovia em pleno horário de pico.
Abaixa-se e coloca o cachorrinho no chão, que anda em círculos e começa a cheirar o gramado. Ainda tem os gestos assustados, treme a cada ruído mais alto da rua, olha tudo ao seu redor, e se seus pequenos olhos já não mostram o pânico que mostravam há pouco, ainda há neles um brilho de medo e desamparo.

Edgar suspira fundo, olha em volta e pondera. Não há nada em volta a não ser muros de fábricas. Gostaria de dar de comer ao cãozinho, gostaria mais ainda de levá-lo até sua casa e cuidar dele por toda a vida, olha sua cara de pêlos curtos e desgrenhados, que lhe dá uma aparência feia e ao mesmo tempo simpática. Mas sabe que não pode fazê-lo, já está atrasado pro trabalho, tem muito o que fazer hoje, e além do mais, mal para em casa, manter um animal, com sua rotina, seria crueldade. Afaga a cabeça do cão, atrás de suas orelhas, pensa que talvez tenha pulgas, mas não tira a mão tão logo. Olha em volta outra vez, resigna-se, e começa a andar de volta pra onde deixou seu carro. O cãozinho o segue, Edgar para, bate o pé no chão pra que ele se afaste, o cachorro se assusta e para, inclinando um pouco a cabeça e olhando pra ele. Edgar volta a andar e o cãozinho volta a segui-lo, Edgar fala alto, passa, vai cuidar da tua vida, o cãozinho para e fica olhando pra ele, abre a boca e deixa pender a língua. Edgar tenta andar outra vez, o cachorro volta a segui-lo, Edgar morde os lábios, bate o pé com força no chão, dá um tapa na anca do cãozinho, que com o golpe volta a andar com as costas curvadas e o rabo entre as pernas e começa se distanciar. Antes de virar a esquina, Edgar olha pra trás, e vê o filhote sentado embaixo da árvore, olhando pra ele. O cãozinho ergue as orelhas, Edgar respira fundo, dá as costas, volta a caminhar e vira a esquina. Anda até seu carro e toma novamente a rodovia.

Dirige sem pensar em nada por alguns quilômetros, até que um espasmo lhe sobe do estômago até a garganta e termina num gemido surdo, e soltando o ar, Edgar começa a chorar copiosamente, fecha os vidros, desliga o rádio, cerra o maxilar entre seu punho, as lágrimas lhe escorrem gordas pelo rosto até pingarem de seu queixo e molharem sua camisa, e ele geme alto e descompassado. Com uma mão ao volante, Edgar segue deste modo por mais alguns quilômetros, e mesmo sem conseguir conter seu choro, se esforça para que nenhum motorista que pare ao seu lado porventura perceba o que está acontecendo com ele.

A poucas quadras antes de chegar ao escritório onde trabalha, Edgar respira fundo, enxuga o rosto com as costas das mãos, e retoma sua compostura. Entra com o carro no mesmo prédio de todas as manhãs, desliga o motor e abre a porta, sorrindo para o manobrista. Passa pela porta automática, cumprimenta o porteiro, passa pela catraca, aperta o botão do elevador. Ele chega, Edgar segura a porta para uma senhora que está entrando, lhe diz bom dia sorrindo, e desce em seu andar. O cheiro do carpete do escritório é o mesmo. Sorridente, Edgar cumprimenta a recepcionista com um gracejo, chega até sua mesa, se senta e liga seu computador. Enquanto espera ele iniciar, olha pela janela, vê a paisagem de todos os dias, familiar. Apóia os cotovelos na mesa, junta as mãos fechadas sob o queixo, a posição medida e dura de todos os dedos. Encolhe a barriga, um pouco por postura, um pouco por medo. Por mais desconfortável que seja, a sensação ainda é a mesma.