sábado, 24 de outubro de 2009

Das respostas adormecidas

Percebo em ti o que deixei que de mim colhesse. Esse fim urgente, gente assim que parece que nunca aquiesce, pra quem tudo é desejo. Vejo em ti qualquer influência minha, com a ciência de que a gente deixa pelo caminho mais do que é consciente.

Fugi de ti sem certeza, sem ter já firmeza no passo da fuga, sem saber se era nunca ou cedo, cedendo ao medo.

Se sinto orgulho, se minto indignação ou admito alívio, não sei se tudo junto, num esperado encontro fortuito, pelo muito de mim que decifrou.

Cada frase certa talvez escondesse um sinal, um final pra tudo que de tão velho em mim se acomodou eterno, inferno de gente assim.

Todos os meus vícios, jeitos, danos, anos e anos de planos desfeitos, tudo o que eu talvez devesse te contar, o que eu nunca dissesse, o que o silêncio se encarregasse de explicar. Tudo o que estivesse pronto pra você entender, num encontro que eu não deixei acontecer.

Daqui, longe como eu quis, vejo o que de ti eu saberia aceitar, toda a beleza que eu vi na sua vigiada clareza, toda sua confusão, aflição desencontrada, nada que poderia me assustar.

Daqui, desse perto que eu fiz, ainda escolho a metade que você possa gostar.

sábado, 4 de julho de 2009

Dos passarinhos

Não é nem o espaço, que, agora escasso, me limita. Ou essa vida de agora, que imita vida, que vai embora, que aumenta dúvida, que irrita, que se demora. A falta que me faz o céu de todos os dias, a paz vespertina das esquinas, o silêncio repentino das madrugadas. Ou o boa noite calado pras luas de todas as noites, a calma que me cobria de veludo, não é a falta disso tudo o que me rasga. Nem o convívio com toda essa gente, esses comportamentos condicionados, se sabendo vigiados. O perigo do olhar insuspeito vindo da janela, o barulho do vizinho.

O que me dá mais saudade de morar em casa é ter um passarinho. Um canário, real ou da terra. Quando ele canta quando acha que ninguém está perto. Aquele trinado longo, que fura o dia, que assusta e preenche, que vira silêncio quando não mais surpreende. Eu tive canários a minha vida inteira, e um deles inclusive acostumou-se a cantar enquanto eu tocava violão embaixo de sua gaiola.

A rotina de limpar a gaiola. Tirar a gaveta que serve de chão da pequena jaula. Trocar diariamente a folha de jornal, colocando uma folha nova, cortada e dobrada da maneira que aprendi com meu pai, processo exato, ritual silencioso. Tirar a gaveta lateral, estreita, coberta com uma fina tira de madeira com buracos redondos e largos, para o pássaro comer o alpiste dentro dela. Assoprar levemente as cascas deixadas, colocar o jiló cortado ao meio num canto, trocar a água da tigelinha, prender o almeirão em cima, quebrando-lhe o talo entre as grades da gaiola. E ver o bichinho feliz, ou ainda, ser capaz de enxergar-lhe a felicidade, batendo as asinhas sobre a água fresca. Ver o bichinho encolhido de noite, imóvel sobre o poleiro mais alto, mas com os olhos sempre atentos. Aquelas duas bolinhas pretas, brilhantes e pequenininhas, te olhando e mexendo a cabeça de modo curioso, olhar ao mesmo tempo fixo e alheio, à sua maneira profundo, parece que sempre estranhando este feio e furioso mundo.

Eu me lembro de um dia em especial. Um churrasco, à tarde, num apartamento, amigos se apertando num domingo lento. Eu sempre fico um pouco alheio em festas, perdido em tudo, fingindo algo, preenchendo com álcool o que me falta. A festa já se adiantava quando eu ouvi um canto de canarinho, perto, tão próximo que só poderia ter vindo de dentro do lugar. Fui andando pelo apartamento, atravessei alguns cômodos, até chegar no último quarto, que tinha uma sacada. Na parede desta sacada havia uma gaiola pendurada. Era um canarinho da terra, verde escuro, com manchas quase negras, penas desgrenhadas no topo de sua cabeça indicando a recente muda de fins da quaresma. Cantava sozinho, talvez pra rua lá embaixo, talvez pro trecho de céu que era possível ver entre os prédios em frente, ou somente o fazia de si para si. Fiquei observando um tempo, encostado à parede, tentando fazer com que ele não notasse minha presença. Eu havia aprendido, anos antes, a brincar de falar com eles, os canários. Um assobio em três partes, grave, agudo, grave, curto e rápido. Eu assobiei sabendo o que ia acontecer. Assim que me ouviu, o pássaro cessou seu canto, alerta, ainda sem me ver. Andando devagar, sem gestos bruscos, me pus em frente a ele. Deixei que ele me olhasse por alguns instantes. Ele pulava entre os dois poleiros da gaiola, me avaliando. Não ousei erguer as mãos, nem me aproximar demais. Assobiei outra vez. Ele agora me observava imóvel.

Passarinhos são desconfiados. Também acham estranho toda essa gente. Demoram, ou nunca baixam a guarda. Por isso, sei que tem que insistir. Recostei-me de lado na parede, mantendo certa distância, assobiando com pausas regulares. No começo, ele olhava e virava a cabeça, estranhando. Com o tempo (uns 10 minutos assobiando), ele entendeu. E começou aos poucos. Assobiando uma nota apenas, curta e rápida. Comecei a imitá-lo, esforçando-me, da maneira que é possível um ser humano imitar um passarinho. Aos poucos, fui adaptando meu assovio ao dele, e gradativamente tornando-o mais longo para que ele me seguisse. E assim, nos sincronizamos. Eu assobiava, fufí-fiu, e ele respondia igualzinho. Calei-me satisfeito, e ele, para me presentear ou para deixar claro quem era o melhor, voltou a cantar como fazia antes de eu perturbá-lo, um trinado longo furando o dia, preenchendo algo que talvez faltasse.

Quando me virei, ela estava na porta, me olhando e sorrindo com um sorriso que nunca tinha visto nela. “Acho que foi uma das coisas mais bonitas que eu já vi” - ela me disse. Eu sorri, e olhando pra ela ali parada, pensei a mesma coisa. Eu não sabia que seria uma das últimas vezes que eu a veria.

Todos esses anos depois, o que eu tenho mais saudade é dos passarinhos.

sábado, 25 de abril de 2009

Das coisas que passaremos a vida sem dizer

“Se os peixes não vierem, pouco importa. Não busco os peixes que chegam alarmados à terra dos homens. Busco uma luz desmedida que me aquiete”
(Paulo Mendes Campos)

Não é silêncio o que se faz naquela sala de aula. Antes, uma redução do barulho habitual. Ainda assim, para aqueles alunos, isso é o máximo de solenidade que estão acostumados a conceder. O pequeno Edgar, sentado na antepenúltima carteira da penúltima fileira antes da parede da janela, está com os dois braços apoiados na mesa puída, cor verde-água desbotado. Observa as pichações feitas à caneta sobre o tampo, ele também contribui com algumas, ofensas gratuitas ao pessoal do turno da manhã, e suas respectivas respostas. Há um pequeno buraco no canto superior direito da mesa, onde se vê as camadas do compensado do qual o móvel é feito. O pequeno Edgar tem a cabeça baixa e olha a capa do seu fichário, sem pensar que usa um fichário não porque quer, mas porque, já há uns dois anos, todos os outros meninos começaram a usar, e como ele ainda não tem sua personalidade definida, tudo o que faz é tentar seguir os modelos que tem, os meninos mais fortes, os meninos que são melhores no futebol, os meninos que já fazem piadinhas maliciosas para as meninas e já tentam qualquer coisa. Olha para a capa do seu fichário, sem saber que o símbolo que ele olha chama-se ying yang. Sabe só que aquele símbolo é usado pela marca Town& Country, e as roupas dessa marca são usadas pelos seus primos mais velhos, e como ele ainda não tem seu próprio gosto definido, tudo o que faz é seguir seus primos mais velhos, embora rechaçado e hostilizado por eles.

O pequeno Edgar está inquieto, esperando os minutos restantes para a aula terminar, e fica olhando seu relógio Champion, modelo que escolheu porque um outro primo seu tinha um igual. Pediu um daquele para seus pais, presente de aniversário, achava que já era crescido o suficiente pra ter um relógio. Todos os seus primos mais velhos usavam, os chamavam de “cebolão”, eram os anos noventa. Sempre se lembrará do dia em que o ganhou. Dezenove de maio de 1992. Sábado. Acordou um pouco mais cedo do que de costume, ansiedade. Os sábados de manhã eram ótimos naqueles tempos. Quando ele acordava, o pai já tinha ido comprar pão e mortadela, trazia também o jornal. O pai fazia, todo sábado, suco de laranja no espremedor elétrico que tinha sido presente de casamento. O cheiro era bom na cozinha, e o sol entrava pela janela em frente a pia, a luz era bonita, e a mãe dormia até mais tarde aos sábados. Todo sábado de manhã era igual, e sempre era bom. O pai com cara de banho tomado, a mãe com cara de quem havia acabado de acordar, e o irmão ainda dormindo. Sempre se lembrará de ter entrado no ônibus sem saber onde se segurar, naqueles tempos ainda se entrava nos ônibus pela porta de trás. Entrara antes que o pai, o pai sempre o colocava na frente em situações assim. A carteira de couro puído se abrindo, os dedos grossos e avermelhados do pai dando o dinheiro para o cobrador (o pai havia lhe ensinado como guardar as notas na carteira, organizando-as de forma crescente de acordo com seu valor, e Edgar sempre se lembraria disso, embora só viesse a usar uma carteira anos mais tarde), o trajeto até o centro da cidade, que naqueles tempos, parecia enorme. O pequeno Edgar se espichava no banco para ver tudo pela janela daquele ônibus, linha T15 – Jardim do Estádio. O pai falava pra ele não encostar o rosto no vidro, era sujo. O pequeno Edgar não sabia por que era sujo aquele vidro, mas naqueles tempos sempre obedecia à voz grave do pai. Observava tudo pelo caminho, todos os tons de cinza das diferentes calçadas, todas as formas de folhas das árvores, todas as expressões das pessoas lá fora, todos os modelos de carro que cruzavam. Descer do ônibus era sempre o momento mais divertido, o desafio do pequeno Edgar era pular todos os três degraus de uma vez, passando pela linha da sarjeta, e pisando firmemente com os dois pés na calçada. Conseguiu fazê-lo perfeitamente naquele dia, e ao mesmo tempo em que ouvia o “Vai cair aí!” do pai, sentiu que já era velho demais para aquela brincadeira.

Sempre se lembrará que caminhava maravilhado, ainda que sem demonstrar, por entre a multidão que preenchia o calçadão da Oliveira Lima, naquele tempo ainda descoberto. Dezenas de pessoas indo e vindo, sacolas e caixas na mão, os pregões dos lojistas, os artesanatos sobre os panos estendidos no chão, e, claro, sempre havia o homem louco, com seu blazer azul marinho desbotado, que passava o dia cantando músicas do Roberto Carlos a plenos pulmões, ignorando os transeuntes. Era difícil e perigoso para uma criança caminhar ali, mas o pequeno Edgar não dava as mãos para o pai. Tinha vergonha de andar de mãos dadas naquela idade, ainda mais com um homem, e sabia que o pai também não se sentia confortável, embora nunca o tivesse dito, nem se negaria a fazê-lo se fosse necessário. A saída, encontrada anos antes, e já instituída como um código nunca dito entre eles, era que o pequeno Edgar segurava no prendedor da cintura da calça jeans do pai, o que naquela época era chamado de cós. Agarrava firmemente com o dedo indicador naquela pequena tira de pano grosso, e assim podia caminhar livremente, a alguns passos atrás, sendo guiado pelo pai. Podia observar tudo, despreocupado, pois tinha a segurança de que sua distração não o faria se perder.

Sempre se lembrará de que, como era costume do pai, entraram em todas as lojas possíveis, pesquisando os preços. Quando, já no começo da tarde, o pai enfim se decidira, voltaram à pequena loja da galeria, e o pequeno Edgar saiu dela já com o relógio no pulso, feliz e orgulhoso, mesmo o cebolão sendo grande demais para seu pequenino braço de dez anos de idade. Também se lembrará que, ao ganharem a rua novamente, o pequeno Edgar abraçou o pai desajeitadamente, sem interromperem o passo, apenas passando o braço pelas costas dele e dando leves tapinhas, distância aceitável para um abraço entre homens. O pai, também sem jeito, desfez um pouco o semblante cerrado, e respondeu com seu grunhido peculiar, que significava, ao mesmo tempo, “De nada” e “ Moleque folgado”: Heh.

Mas o pequeno Edgar não se lembra disso agora, enquanto mantém os olhos nos ponteiros e bate os pés no chão, esperando tocar o sinal da saída. Ouve já alguns barulhos na quadra ao fundo da escola, os sons surdos dos chutes na bola, os sons agudos das solas dos tênis sobre o concreto liso, e se pergunta quem será que já terá sido dispensado e já está lá. Olha em volta, e seus amigos têm a mesma expressão ansiosa que ele. Quando enfim ouvem o berro longo e estridente do sinal, levantam-se rapidamente, caminham por entre as fileiras, se despedem do professor com joviais e ainda educadas expressões, e se misturam à massa barulhenta que inunda o corredor e as escadas.

Quinze meninos chegam à quadra esburacada atrás do prédio da escola pública. E, como o manda o senso de justiça deles, os três melhores tiram dois ou um para ver quem começa a escolher os integrantes de seus times. O número de meninos permite formar três times, um time sempre ficando de próximo. O pequeno Edgar joga mal, é um dos piores, todos sabem disso, ele sabe disso, e sabe que por isso sempre é um dos últimos a ser escolhido. Resta a ele o conforto de saber que nunca é o último de todos, porque apesar dele ser ruim, um dos melhores jogadores da escola é também um de seus melhores amigos, e por isso acaba escolhendo o pequeno Edgar não por critério, mas por consideração.

O pequeno Edgar se esforça, corre o tempo todo, grita, tenta coordenar as jogadas, mas perde a bola, chuta torto, e de vez em quando a sorte lhe presenteia e ele acerta um cruzamento que resulta num gol, e de vez em quando algum dos colegas o presenteia e lhe dá um passe para que ele faça um gol, quando os zagueiros e o goleiro já estão vencidos.

Jogam por umas duas horas, revezando os times, até que escureça, e voltam pra casa sujos, suados e satisfeitos, com um orgulho qualquer que sentem mas não percebem a lhes estufarem os peitos.

Naqueles tempos, chegar em casa no fim da tarde era sempre bom. O cheiro da janta sendo feita era sentido já no portão, e ao atravessar o quintal, ia já ouvindo as vozes da mãe e da vó que conversavam na cozinha. E então era o banho, a janta e os desenhos na TV, a novela com a mãe esperando o pai chegar, o barulho do portão abrindo e a cachorra latindo quando o pai chegava em casa, os gibis no quarto até a hora de dormir. Todo fim de dia de semana era igual, e era sempre bom.

Naquele dia, era sexta feira, e o pequeno Edgar se demorava mais do que o costume em frente à TV, e sempre se lembrará de como o pai entrou pela sala, hesitou por alguns segundos e disse, como em algumas outras vezes: “Tá a fim de pescar amanhã?”. Naqueles tempos, ele sempre dizia que sim, mesmo sem saber porquê. “Quem mais vai?”, perguntou ao pai, porque sempre iam alguns amigos do bar junto. “Vou sozinho. Matar peixe”. “Tá.”, respondeu, e se sentiu um pouco mais alegre, porque nunca tinha ido pescar sozinho com o pai, sem a companhia de mais alguém. “Vai dormir. Amanhã saímos antes das cinco”, o pai finalizou, enquanto saía pra garagem para arrumar os apetrechos da pescaria.

Acordou antes que o chamassem, ao ouvir os primeiros ruídos na casa, ansiedade. Levantou-se da cama e, no escuro, pegou a muda de roupas que a mãe preparara na véspera, saiu do quarto tentando não fazer barulho pra não acordar o irmão que dormia na cama ao lado da sua. Encontrou o pai na cozinha enchendo o isopor de gelo e latas de cerveja, e a mãe sentada na cadeira com um dos cotovelos apoiados na mesa, a cabeça apoiada sobre a mão, dando palpites com voz de sono, despenteada e com uma expressão de enfado.

Sempre se lembrará da Brasília cor de vinho, cuja placa era UG 2018. Naqueles tempos, as placas dos carros ainda eram amarelas, e tinham somente duas letras antes dos números. Saíram com o dia ainda escuro, as varas entre eles, dividindo o espaço do painel até o vidro traseiro do carro, e os apetrechos no porta-malas fazendo barulho nas curvas.

O ritual era sempre o mesmo. O café na padaria, já no Riacho Grande, onde também compravam os lanches que serviriam de almoço. O café com leite e o pão na chapa enquanto viam o dia amanhecer. Tentar para o carro na sombra, e andar no mato molhado até encontrarem um lugar isolado. O pai deixava o pequeno Edgar carregar a caixa dos apetrechos, enquanto levava o isopor, a mochila e as varas. Quando enfim o pai achava um lugar satisfatório, colocava o isopor e a mochila mais afastados, à sombra de alguma árvore. Ainda distante da água, onde a grama terminava, desamarrava as tiras de borracha que prendiam as varas, preparava os chicotes e as chumbadas, colocava os anzóis, instalava os molinetes, com uma calma que exasperava o menino. Aprontava antes a vara do filho, sempre o colocava na frente em situações assim. Procurava algum toco grosso e curvo, e quando o encontrava, entrava na água até a altura das canelas, fincava o toco firmemente na areia grossa da margem, e nele pendurava o samburá, que ficava quase todo submerso, balançando ao sabor da correnteza. Fazia isso para que os peixes que pegasse pudessem ficar vivos durante toda a pescaria, pelo menos era o que o menino imaginava.

Preparava as duas latas de iscas, que podiam ser minhocas, vermes (cujo cheiro causava náusea ao pequeno Edgar) ou ração. Colocava uma lata no bolso, ou a prendia na cintura, ou podia até mesmo deixá-las na areia, desde que não ficasse exposta ao sol. Este mesmo processo variável era também aplicado ao seu pequeno radinho de pilha, que tocava (volume baixo para não espantar os peixes) coisas que o pequeno Edgar ainda não conhecia naqueles tempos. Cartola. Adoniran Barbosa. Altemar Dutra. Deep Purple. Rolling Stones. Raul Seixas. “O Samba pede passagem.”

Com tudo já pronto, o pequeno Edgar escolhia o lugar onde ficaria, quase sempre cerca de quinze metros distante do pai, para não atrapalhar, nem ser atrapalhado. O pai então abria a primeira lata de cerveja, e soltava um suspiro grosso e satisfeito após o primeiro gole. Lançava a linha à água, recolhia, e ficava quase imóvel, com uma expressão ao mesmo tempo concentrada e serena. O vento gelado matinal passava por seus cabelos negros e lisos, o ar tinha cheiro agridoce, característico, do qual Edgar nunca se esquecerá, cheiro de represa, relva úmida, o restante da branca névoa noturna ainda se demorando a dissipar. O pai agora era parte da paisagem, a compunha, junto com o sussurro constante da água corrente que se misturava aos diferentes cantos dos passarinhos seus cantos de amanhecer. E então seu rosto assumia uma feição de satisfação, tão sutil que somente a um filho era possível perceber.

O pequeno Edgar já sabia o que fazer, tinha aprendido anos antes. Observava todo o leito da represa. Haveria alguma faixa da água que seria mais escura, e que pareceria correr mais rápido. Ali era o canal. Onde os peixes maiores nadavam. Era ali que o anzol deveria ficar. Se esforçava para recordar todos os passos. Segurava a vara firmemente, a mão esquerda embaixo, a mão direita em cima, com seu pequeno dedo indicador prendendo a linha e mantendo levantada a fina trava do molinete. Com as mãos fixas dessa forma, erguia a vara por cima do ombro direito, o peso do chumbo pendendo por trás de suas costas, e o lançava, com força controlada, num semicírculo por cima de sua cabeça, afrouxando o dedo para que a linha corresse livre até que o chumbo caísse no lugar desejado, no meio do canal. Deixava afundar um pouco e descia a trava, interrompendo a queda. Girando a pequena manivela do lado direito do molinete, recolhia a linha até que ficasse suficientemente esticada para poder perceber qualquer movimento do anzol. Fixava o olhar na pequenina bóia branca com litras vermelhas sobre a superfície da água. Às vezes mantinha o olhar tão fixo que a visão se embaralhava, parecia que a água marrom parava de correr, e ele é que se movia. Quando isso acontecia, ficava tonto, piscava forte e sacudia a cabeça para voltar ao normal. Ficava tentando imaginar o anzol com a isca ali, naquele mundo escuro do fundo da represa, com os peixes passando em volta, intrigados com aquele pequeno alimento boiando gratuitamente em seu percurso, dádiva insuspeita.

O pai sempre pescava dois ou três peixes antes que ele, e o pequeno Edgar não percebia que isso talvez fosse a natureza tentando lhe ensinar qualquer coisa sobre a hierarquia da vida. O pai dava um tranco brusco, puxando a vara para si num solavanco e girando rapidamente a manivela do molinete, o barulho repentino que a água fazia tirava o menino de sua concentração, e ele observava, orgulhoso e atento, a forma como o pai manejava a linha para prender o peixe de vez, trazendo-o para a superfície. Divertia-se quando o pai, já certo que vencera o duelo, ria brejeiramente ou soltava um assovio alto imitando um bem-te-vi, e enfim soltava o peixe do anzol para medi-lo e colocá-lo no samburá. Então o pai relaxava os ombros, caminhava até onde a grama começava, para repor a isca e buscar outra cerveja, fazia qualquer comentário, ou cantava um trecho de alguma canção, olhava ao redor e voltava para a beira d’água. O pequeno Edgar então se sentia desafiado, esforçava-se para pescar algo, mudava estratégias, embora sua inquietude o fizesse mover demais a vara e a linha, e perdia a isca em poucos minutos, tendo que repô-la constantemente.

Quando enfim a sorte lhe presenteava com alguma fisgada certeira, o menino era tomado de êxtase, tentava dominar-se para fazer tudo da maneira correta, o pai gritava alguns poucos conselhos do lugar onde estava. Tirava o peixe da água (sempre eram menores que os do pai), e deixava-o pendurado ao anzol por alguns instantes, saboreando aquela alegria. Ficava tão imerso neste momento, que nunca pôde ver o olhar orgulhoso do pai, mirando o filho desajeitado, contente de seu próprio esforço e recompensa.

O pequeno Edgar tinha medo de soltar o peixe do anzol, embora o pai o tivesse ensinado anos antes. Colocá-lo na palma da mão, e, baixando os dedos, prender-lhe a barbatana para que não se sacudisse. Dessa forma, o peixe se manteria imóvel, para que se pudesse soltar o anzol de sua boca e colocá-lo no samburá. Conseguia fazê-lo amiúde, mas muitas vezes o menino aceitava sua incapacidade e recorria ao pai, que fazia esta parte do processo, não sem antes reclamar qualquer coisa.

O menino enfadava-se logo, e o pai, mesmo que dissesse qualquer frase em desaprovação, sabia que seria assim. O pequeno Edgar então saía a caminhar pela relva, observando alguns lixos sobre a margem, resíduos de pescadores anteriores. Olhava os peixes no samburá, brincava na beira da água, debaixo das broncas do pai que sempre dizia que com represa não se brinca, que há que se respeitar a represa, e mesmo que naqueles tempos ainda não entendesse o porquê, disso também Edgar sempre se lembrará.

Às vezes o pai demorava a pescar alguma coisa. Houve também os dias em que não pescavam quase nada, e inclusive houve dias em que nenhum peixe saiu da água. O pai nunca se importou com isso. “Peixe é detalhe”, ele dizia ao menino, que, naqueles tempos, não compreendia como isso poderia ser possível numa pescaria.

“Peixe é detalhe.” Edgar nunca se esqueceria desta frase, embora tenha levado duas décadas para ele entender seu real sentido. No princípio de sua vida adulta, aos vinte e poucos anos, quando sua personalidade enfim se definia, Edgar, que sempre lera muito, encontrou num livro uma frase que traduzia e catalisava este conceito: “Se os peixes não vierem, pouco importa. Não busco os peixes que chegam alarmados à terra dos homens. Busco uma luz desmedida que me aquiete”. Edgar, impressionado e identificando-se com aquilo, anotou a frase num pedaço de papel e o deixou na prateleira da estante da sala onde o pai guardava seus objetos pessoais. Também nunca se esquecerá de quando dias mais tarde o pai irrompeu em seu quarto tarde da noite, ligeiramente ébrio, e comentou a frase. “Uma luz desmedida que me aquiete”, repetia, talvez sem saber que essa busca, desesperadora e vã, também tinha sido incorporada pelo filho.

Mas naquele dia em especial, o pequeno Edgar não pescara nada. No começo da tarde, já havia abandonado a vara e quedava-se sentado à sombra de uma árvore, protegendo-se do sol a pino, divertindo-se com um gatinho vadio que aparecera por ali e observando o pai de longe, no mesmo lugar desde o princípio do dia, à margem da represa com água até as canelas, com o samburá já mais cheio.

Sem que o pequeno Edgar se desse conta, o pai enfim deu a pesca por terminada. Puxou toda a linha, agarrou o samburá e caminhou até onde estavam a mochila e a caixa dos apetrechos, perto do menino. Abriu o isopor, abriu outra lata de cerveja, e sentou-se na grama. Bebeu um gole, olhou pra água por alguns instantes, colocou a cerveja no chão. Abriu a mochila calmamente, tirou dela uma pequena pilha de jornal, separou uma folha, abriu-a e estendeu no chão fofo. Tirou uma tábua de cortar alimentos, de plástico branco, e a colocou sobre a folha estendida. O pequeno Edgar agora olhava atento e calado para o pai. Sem demonstrar nenhuma pressa, o pai retirou da mochila uma faca grande e de cabo prateado, embrulhada num papel grosso, um pequeno vidro contendo um líquido preto, e um outro vidro menor e mais arredondado, contendo finas fatias de gengibre em conserva, e um pequeno prato de plástico duro verde escuro. Dispôs tudo ao redor do jornal, puxou o samburá pra perto de si, hesitou por um segundo, e aumentou um pouco o volume de seu radinho de pilha. “Isso é Pink Floyd”, disse para o filho, embora sem olhar pra ele. O pequeno Edgar, agora já completamente tomado, sentava-se perto do pai e o observava em silêncio. O pai tirou um peixe do samburá, que ainda se debatia, colocou-o sobre a tábua, segurando-o firme, e com a outra mão segurando a faca, decepou-lhe a cabeça praticamente num só movimento, fazendo-o a cair um pouco longe, sobre a grama. O pequeno Edgar emitiu um gemido surdo, enquanto o pai, com cortes precisos, cortava o peixe pela barriga, longitudinalmente, e retirou-lhe as vísceras com a ponta da faca. Cortou-lhe enfim a cauda, e depois, manejando a faca habilmente com o polegar e o indicador, retirou-lhe a pele e finalizou o corte fazendo dois filés, que depositou sobre o prato. Fez isso com todos os peixes, que eram uns cinco ou seis. Juntou todas as vísceras, cabeças, caudas e peles que sobraram, e deixou ao pé da árvore, para que o pequeno gato, que olhava atento para tudo, se fartasse. O pequeno Edgar estranhou que um gato pudesse gostar daquilo, mas o pai o tranqüilizou dizendo que para o animal, aquilo era um banquete. Sentado novamente, o pai cortou todos os filés em pequenos pedaços. Abriu o pequeno pote de vidro e jogou algumas fatias de gengibre. Terminou jogando por sobre tudo aquele líquido preto, que o pequeno Edgar perguntou o que era. “Shoyu”, disse o pai, enquanto abria a mochila novamente para pegar dois garfos. Deu um deles ao menino, que assombrado, perguntou: “A gente vai comer peixe cru?”. O pai riu, espetou um pedaço de peixe e uma fatia de gengibre com o garfo, esfregou no molho no fundo do prato, e de boca cheia, riu dizendo: “Você não sabe nada.”

Edgar sempre se lembrará disso. Mesmo quando, dezessete anos mais tarde, estiver sentado numa mesa de um restaurante japonês, junto com seus colegas de trabalho, no horário de almoço de uma terça-feira. E quando o garçom chegar trazendo uma bandeja cheia de muitas variedades de sushi e pequenos filés de vários tipos de peixe. E quando um dos colegas apontar para uma das pequenas filas de filés de peixe cru e perguntar que tipo de peixe será aquele, Edgar, inadvertidamente, terá seu olhar perdido, lembrando-se daquele dia. E quando um dos seus colegas, ao notar um sorriso sutil e meio bobo no rosto de Edgar, lhe perguntará:
- O que foi?
Edgar voltará seu olhar para ele por um segundo, para logo depois deixar-se perder novamente, voltando a sorrir enquanto responde:
- Nada.

De tudo que nunca é dito

Aí eu não sei o que pensar, nem se quero pensar. Mas na real, não tem como não pensar, sabe? Porque se surge a dúvida se quero ou devo pensar ou não, é porque rolou algum impacto. Sabe? Mesmo que finja ou me force que não, pra chegar nesse ponto é porque rolou o impacto sim. Você não concorda?

Bom, então vamos brincar assim. Vamos brincar que eu te digo as coisas que nunca diria se não estivéssemos bêbados assim, melhor ainda, que eu digo as coisas que eu não diria nem se estivesse assim. Vou me arrepender, certeza. Talvez até apagar antes. Mas...tá, sim. Mais uma cerveja?

Não sei como foi, nem se foi. Mas foi assim. A gente se viu, e eu não vi nada demais. Ou vi e não quis ver, sei lá. Alguém lá sabe? Sei que eu fui embora, e nem pensei, e acho que nem você. Mas depois, pensei em você. Mas depois era depois, você era nunca, e eu, como sempre, era quase.

Aí depois a gente se falou, não sei por quê. E eu gostei, nem sei do quê. Aí eu vi umas coisas de você, mas nem fiz caso, vi coisas que você fez, e, por acaso, te admirei. E vi mais coisas, e te mirei mais. Um dia você me chamou, e eu gostei porque te procurava sem admitir. Eu queria estar perto de você, mas sem mentir. Queria fazer parte de alguma coisa sua, mas sem invadir, eu queria que você quisesse. Mas depois desisti, porque eu sou sempre assim. Eu paro no quase, nada assim tão ruim, e você, como tudo o que pudesse ser bom, por isso mesmo, já era nunca, já era fim.

Aí você me chamou de novo, e eu gostei mais, porque já quase admitia, mas não acreditava, nem queria. Eu, que ria, queimava, ardia, amava já uma projeção que esbarrava num muro que eu mesmo construía.

Mas talvez fosse você que se ria. Mais de uma vez (e mesmo agora) eu pensei em como seria. Se fosse, ou se...se fosse você. Se a gente se visse mais, se desse certo. Se a gente saísse, e, de perto, fosse assim natural, o olhar, o toque, a química, alguma mímica que a gente inventasse, devagar, um choque não sei em que lugar, alguma rítmica, cadência que a gente encontrasse, e que soubesse ser só da gente, e que urgente viesse uma paciência que nos fizesse aceitar o tempo que fosse durar.

Aí eu quis você, fiz uma você do meu lado. A gente já íntimo, eu já calado, você deitada na minha cama num domingo, a gente rindo de um filme qualquer na TV. E eu te via já quase todo dia. Eu já gostava da tua mão, eu não pensava mais em nada, você já era acostumada comigo. Não havia mais perigo, você sabia dos meus vícios, todos os nossos sacrifícios já eram passado, era paz o que havíamos encontrado. Eu gostava do seu cheiro, você conhecia meu corpo inteiro, eu sabia de cór suas tatuagens, minhas manias eram quase bobagem, as suas eu nem ligava, eram uma bagagem que você trazia e eu acolhia, aceitava. Na hora da cama, eu não tinha mais medo, nada era segredo, tudo pintava direito e a gente aproveitava.

Eu gostava do seu rosto, do seu gosto de manhã, você se aninhava no meu colo, no meu peito, a gente logo encontrava um jeito, um gesto, uma calma.

E é isso. E era assim. E então isso fica assim. Isso fica entre nós, e morre aqui. E amanhã, quando a gente acordar de ressaca, não vamos lembrar de nada com clareza. Saca? A gente nunca vai ter certeza. Nunca vai saber o que de fato aconteceu. Você vai até achar que quem falou isso tudo foi você, e não eu. Não é uma beleza? A gente nem vai se arrepender. Mas...tá. Mais uma cerveja?

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Da Inércia

O sol fura o céu nublado, que chove a mesma chuva intermitente, já há dias a fio. O sol atravessa a janela e pousa nas mãos sobre o teclado, tamborilando, inconsciente gesto frio. Os dedos de Edgar param de repente.

Quer ir embora. Não pra casa, a louça repousando na pia, a nuvem de tédio parada nos cômodos, os modos contidos da vida em prédio, o inevitável incômodo confortável. Nem pra qualquer outro lugar, vertigem de gente, qualquer um é multidão. Nem mulher, nem bar, nenhuma alegria urgente, toda euforia é confusão. Quando tudo o que se quer é ir embora, não existe lugar nenhum.

Os olhos de Edgar se detêm no monitor, e o atravessam. A janela ao seu lado treme com o movimento do trânsito que se intensifica. Todo o pessoal do escritório já foi embora, Edgar fica. Abre a janela do Messenger, mas sabe que ninguém ali o interessa. Quando tudo o que se quer é ir embora, tudo é espera, tudo é pressa. Desliga o computador, apanha a mochila da cadeira, desliga o interruptor, a sala inteira escurece, esquece uma janela aberta, volta, fecha, caminha na escuridão pelo corredor. Tranca a sala, chama o elevador, e impaciente, espera. Se alegra, sem nenhum motivo aparente, porque é quinta feira.

A porta se abre no quinto andar, Edgar amaldiçoa em silêncio, odeia dividir elevador. Vertigem de gente, qualquer um é multidão. Entram uma gorda vestida de branco e um senhor, Edgar balbucia uma saudação, e se odeia porque não tem controle sobre seu tom de voz em situações assim. Retesado, olha pra baixo, olha para as mãos, se olha no o espelho da parede do fundo do elevador, desvia rápido o olhar porque não quer que pensem que ele se preocupa demais com a aparência, ele não é desses, e ele sabe que não é, mas também sabe que provavelmente se olharia no espelho durante toda a descida se estivesse sozinho naquele elevador. E por ficar pensando nisso tudo, os poucos segundos da descida lhe parecem intermináveis, mas finalmente o elevador para no térreo, e Edgar segura a porta para que os dois saiam e lhes diz boa noite, com um sorriso que, embora fabricado e usado várias vezes, sempre lhe será incômodo.

Desce até o subsolo e brinca com os manobristas, fala sobre futebol, afinal é pra isso que ele lê o caderno de esportes no jornal, pela internet, todas as manhãs. Sente algum enfado, mas se alegra por participar desse pequeno universo coletivo. Além do mais, sabe que é uma atitude sábia ganhar a simpatia dos manobristas, para que tratem seu carro com mais cuidado do que os dos clientes comuns.

O carro de Edgar se mistura a esta enchente metálica que transborda todos os dias, e nem percebe mais o caminho. Os carros não são gente. Os carros são máquinas com vida e comportamento próprios. Disputam o mesmo espaço que não existe, lataria de hostilidade sobre carcaça de pressa infundada. Submergem numa alcatéia que rosna, e a qualquer interrupção todos berram, urram, guincham, os uivos de nossos ancestrais deram lugar a isso, a bestialidade ficou mais confortável e cercada de insulfilm. A miséria lá fora não existe, amenizada com punhados de moedas entregues com expressões condescendentes, a miséria de dentro é maquiada com música ruim, e todo o ar se condiciona. As últimas gretas são preenchidas por motos, o mal produzido por outra máquina, a da urgência, conveniência, inventadas necessidades. Incomoda a Edgar que a primeira reação natural ao próximo seja hostil, mas nos dias em que ele não abraça tanto sua hipocrisia, ele sabe que é dele que parte a primeira hostilidade. Em seus dias bons, ele também sabe que nem toda hostilidade é recíproca.

Um maço de cigarros de menta repousa esquecido no porta-objetos da porta do motorista. Edgar os olha e por um segundo se pergunta como é que foram parar lá. Não é a marca que ele fuma, e ele nunca fumaria um cigarro de menta. Edgar sabe que, secretamente, ou mesmo sem perceber, a marca de cigarro que se fuma te coloca em uma categoria. Se é julgado por isso, e ele definitivamente nunca quis ser alguém que fuma cigarro com sabor. A chuva para novamente, e parado no trânsito, Edgar se lembra que aquele maço era dela. Uma mulher que só fumava quando saía com ele, ela dizia, e ela disse também que tinha experimentado aquele cigarro e gostado. Edgar não gosta de ter sido obrigado a lembrar disso desse jeito, de forma abrupta, e retoma o controle de sua linha de pensamento, para evitar fazer o cálculo de há quanto tempo aquele maço está ali. Olha para o porta-objetos em frente ao freio de mão, onde está o seu maço de cigarros, da marca escolhida por ele, à qual seu paladar e dedos estão acostumados, e que todos sabem que é o cigarro que ele fuma. Ele se lembra que ela não gostava daquela marca, e por isso, sempre que ele a pegava em casa para saírem, ela pedia para pararem em algum lugar pra comprar cigarros. Pensando nisso, ele pega seu maço e seu isqueiro bic pequeno na mão, mas hesita. Se irrita consigo mesmo por deixar uma bobagem daquelas interferir num gesto tão pequeno e maquinal, e os coloca de volta no compartimento. O tráfego volta a andar e Edgar pega um cigarro de menta, não para se lembrar, mas para exercitar a indiferença. Estranha o tamanho, mais fino e longo que o seu, mas o sabor não lhe desagrada, afinal. Abre uma fresta do vidro da janela e abaixa o volume do rádio, não gosta que outras pessoas saibam o que ele está ouvindo.

O portão automático da garagem do prédio se levanta, Edgar cumprimenta o porteiro erguendo a mão, e acelera seu carro por entre as colunas do estacionamento acima da velocidade permitida pelas normas do condomínio, de propósito. Edgar não quer que a idade o faça perder o prazer das transgressões mínimas, e evita pensar no ridículo disto tudo.

A porta do elevador se abre, e ao entrar, Edgar sente cheiro de perfume, resíduo de alguém que acabara de sair. O elevador passa pelo térreo sem parar, e Edgar se sente aliviado por não ter que dividir espaço com ninguém, vertigem.

Abre a porta de seu apartamento ouvindo o labrador da vizinha latir, mas não quer se irritar, porque a vizinha é cega. A mochila é jogada no sofá, e sobre a mesa da sala ficam a carteira, as chaves, o documento do carro, o celular e o maço de cigarros. Vai até o quarto, tira o tênis e a camisa, suspira. Abre a janela, e lá fora, o tempo lhe parece suspenso. Quando tudo o que se quer é ir embora, tudo é demora e paciência.

Vai até a cozinha, o chão está escorregadio de gordura e sente preguiça antecipada porque sabe que vai ter de limpar, abre a geladeira, constata que se quiser comer alguma coisa, vai ter que cozinhar, então pega uma lata de cerveja, pega um cigarro do maço sobre a mesa da sala e vai para a sacada. Olha os carros na avenida. Em uma das sacadas do prédio em frente há um senhor fumando, e Edgar percebe nele uma postura resignada, pensa que talvez sua esposa não o deixe fumar dentro de casa. Os olhares dos dois se encontram, e se demoram por uma fração de segundo até que o senhor o cumprimenta dobrando os lábios pra dentro num semi sorriso e com um movimento de cabeça, gesto que Edgar repete da mesma forma, e ambos desviam o olhar. Numa outra sacada, um gato gordo está deitado sobre o parapeito, e em outra se pode ver um casal assistindo TV no sofá.

Edgar volta pra sala, se senta no sofá, olha pra TV desligada e pondera. Se levanta apressado, vai até o quarto, calça os tênis, veste uma camisa limpa, apanha a carteira, as chaves, o documento do carro, o celular e o maço de cigarros na mesa da sala, apaga todas as luzes, menos a da sacada. Caminha na escuridão pelo corredor. Tranca a porta, chama o elevador, que demora. Dessa vez não ouve o labrador da vizinha cega. Quando tudo o que se quer é ir embora, sempre se sabe que nunca se chega.

sábado, 14 de março de 2009

Das sugestões serenas, isentas e fiéis

"All I want is a room with a view. A sight worth seeing. (...)
A small remembrance of something more solid"
Blondie - Picture This


Edgar acorda de um cochilo e se lembra que é sábado. Olha pro relógio no criado mudo, e vê que são quase oito e meia da noite. Tem sono ainda, seu corpo ainda está impregnado de torpor, olha em volta do quarto escuro, e se deita de barriga pra cima, descobrindo-se atirando a colcha no chão. Quer se levantar, não quer perder tempo, mas não tem o que fazer. Presta atenção pra ver se tem alguma necessidade. Não. Nem fome, nem vontade de ir ao banheiro, nem vontade de sair, nem vontade de fazer qualquer coisa especificamente. Mas é sábado e não quer mais ficar dormindo em seu único dia realmente livre. Consulta sua mente pra ver se tem algo que precisa ser feito, e não pensa em nada urgente ou possível a esta hora. Reúne forças e se senta na cama, virando de lado e colocando os pés no chão. Esfrega as mãos no rosto e se levanta. Abre a janela, não gosta do cheiro viciado de gente dormida. O céu já está escuro, está quente e não chove. Tampouco venta. Caminha até a porta, tropeçando nas coisas no chão, que não se lembra o que são. Sai do quarto, a casa está toda escura. Vai até o banheiro, acende a luz, que lhe fere os olhos, abaixa a cabeça por alguns instantes, para que seus olhos se acostumem. Se olha no espelho, arregala os olhos, franze a testa, arqueia as sobrancelhas, abre a boca o máximo que pode, quer acordar seus músculos, passa as mãos pelos lados da cabeça, deixando seus cabelos ainda mais bagunçados. Lava o rosto e assua o nariz na pia, se olha no espelho uma outra vez e pensa que precisa fazer a barba, mas deixa pro domingo. Se enxuga e urina tentando manter o jato no centro do vaso, sem pingar fora.

Caminha pela casa, vai até a cozinha, para e pensa no que quer ou deve fazer. Bebe água. Pega um copo, enche até a metade de café morno, feito pela manhã, esquece de colocar açúcar, dá o primeiro gole, faz uma careta e vira tudo de uma vez. Deixa o copo na pia e volta para o quarto. Deita na cama, liga a TV e acende um cigarro. Vaga pelos canais sem nada que lhe interesse. Desliga a TV e pega o notebook. Ainda não sabe o que quer fazer. Volta pra cozinha, abre a geladeira, pega a garrafa de sakê e enche meio copo. Volta pra cama, põe o notebook no colo. Percebe que não está com disposição para nada. Quer criar algo inovador e definitivo, mas não sabe de onde tirar forças para tanto, e, no entanto, ainda evita duvidar. Fica parado, com as mãos inertes sobre o teclado, a tela do Word em branco, o prompt pulsando, exigindo algo, seu piscar constante e ritmado é quase como um julgamento, insuportável.

De repente, em meio ao quase silêncio da cidade lá fora, uma cigarra começa a cantar. Edgar se surpreende, há quanto tempo não ouvia este ruído. Pensa e crê que nunca o tinha ouvido em sua cidade. Sorri inadvertidamente, ergue seu olhar para o nada, e saboreia o canto do inseto, onde quer que ele esteja. Imóvel, escuta até o final, até que o canto vai se tornando mais estridente, descompassado, diminuindo até desaparecer. Não pensa em nada por alguns segundos, até que suspira, sorri outra vez e resigna-se. Nada será dito esta noite.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

De outros carnavais

Eu me cerquei de silêncio pra nunca mais ouvir teu nome. Eu já matei qualquer fome, eu já brinquei carnaval. E o mal que me consome eu conservei no sal. Por bem, eu fui homem.

Eu virei minha cara, eu parei para tudo, acalmar a tarde. Eu mudei, e o mundo sempre morde.
Mudo, matar de mim tudo que nasce. Minha outra face ainda arde.

Eu me contentei com sorriso, eu fiz rir, eu quis do outro a qualquer custo, e justo quando estava pra partir, ganhei. Apartei de mim as outras partes, eu sei que assusto se olhar demais. Eu não sei mais o que quero falar.

E o que me chama à noite, nêga, me carrega.
E se me chama à noite, nêga, se encarrega.
E se a chama foi-se, nêga, não se entrega.
Me deixa uma noite, nêga, não me nega.

Eu já dancei batucada, nada demais, a cada fossa nova que me provoque, enrolo, gosto mais, nada me faz desistir do choque, não me toque, você não engole o que me satisfaz.

Carreguei em mim o cheiro dos povos, voraz massa que consome os dias, de amargar tantas longas demoras. Não sou eu, não sou um, fui embora. Não sou nenhum portador de alegrias. Eu desperdicei meu brilho, fui filho do fim do mundo, no fundo dos olhos eu colho tudo que não me dizem. Reluz em outros o que escondo em mim, assim eu finjo que me conduzem. E aos que me fogem eu digo sim.

Viver para evitar alguém
Também é morrer sem se separar.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Das elegâncias desperdiçadas

O horário da elegância já passou há algum tempo. Eu sei por que tudo agora é névoa e náusea, eu olho pro outro lado evitando a fumaça, tudo em mim é a necessidade de regurgitar, tomar uma coca-cola e desabar na cama. Talvez não agora. Os copos ainda não se esvaziaram, os assuntos interrompidos ainda não foram todos retomados, os dedos tamborilam na mesa, a garganta adormece, as extremidades formigam, e ela me olha. Eu preciso bolar um estratagema, para ir ao banheiro, expulsar o que precisa sair, e ir embora. Preciso ir embora sem que este ato dê tanto trabalho. Mas os olhos dela acompanham meu caminho. Eu já não participo da conversa, eu já não esvazio meu copo tanto como no começo da noite, eu parei de encher os copos de todos na mesa. Eu apalpo meus bolsos e me certifico de que tenho todo o necessário. Eu olho em volta e verifico se ninguém vai me atrapalhar. Eu me levanto e vou até o banheiro, eu entro no corredor até a última porta, eu entro na cabine, eu prendo a porta com o pé porque não tem tranca. Eu me ajoelho prendendo a porta com a coxa, eu enfio o dedo na garganta, eu tento não fazer barulho, eu deixo de me preocupar, eu levanto pálido e latejante. Eu tenho um chiclete no bolso, justamente para este fim. Eu dou descarga duas vezes.

Eu me olho no espelho, eu jogo água no rosto, eu lavo minha boca, eu lavo minhas mãos. A noite agora já fugiu ao meu controle.

Eu saio cabisbaixo, ela me aguarda sutilmente na saída do corredor, eu levanto os olhos, que encontram os dela, eu não digo nada, eu não poderia, ou conseguiria.

Eu mastigo o chiclete mais forte, e num impulso, eu a puxo pelo pulso pra dentro da cabine mais próxima, o cheiro do cabelo dela faz a náusea voltar. Não há pé que feche a porta, a perna que se abre, o gemido que parte, dissimulado, que se encerra em mim, que nada insinuo, que nada ensino. Sinalizo o fim antes do desfecho, abro a porta e a deixo.

Eu fujo à francesa, sujo, a tristeza não me encontra, nem me apavora. Fui embora.

Eu chego no apartamento, entro lentamente, o tormento novamente de evitar qualquer ruído. Caído, no chão do banheiro, eu primeiro expulso o excesso, depois tento escrever. Sem sucesso.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Ela ganhou um conto sem saber

A mulher que eu olho agora fala espanhol, enquanto fuma, elegante como uma serpente. O braço reto, vertical, cabelos negros sobre a blusa de lã verde, e a garrafa de cerveja cuzqueña sobre a mesa.

Todos à minha volta pensam em línguas diferentes da minha.

Começou como tensão, os músculos da perna rijos, e o coração lançando mais sangue do que as veias pedem. A bênção etérea dos calmantes a dissolveu, e eu pude observar maravilhado os picos das montanhas cobertos de neve. Soy latino.

Ela agora não fuma nem bebe, apenas apóia a cabeça sobre o punho enquanto olha pro nada, e eu me lembro que tive que atravessar um continente só pra ver a mesma babilônia. Na confusão de dois dias sem dormir, entre alguns países, eu também não sei em que língua penso.

Talvez na língua dela, que leva em si o hálito de tudo o que eu finjo entender e nunca (v)terei.

De repente a luz lhe pareceu clara demais

De repente a luz lhe pareceu clara demais, amarela demais, demasiada. Fechou a boca que arquejava, semicerrou os olhos que a claridade feria, e de palma aberta, passou a mão do peito ao ventre, para tirar o suor. Sua pele alva de meses sem sol, juntamente com a viscosidade e o brilho úmido gerado pelo esforço físico lhe fez vir à mente qualquer sensação de desperdício. A visão de seu pau, avermelhado e inchado, também não lhe agradou. Ergueu as costas, deu a volta por cima dela, que ainda tinha os olhos fechados e alguns fios de cabelo desgrenhado no rosto, e saiu da cama. Vestiu a cueca e procurou a carteira na calça jogada no chão. Ela abriu os olhos, tirou os cabelos do rosto, e puxou o travesseiro, que estava no chão, pra detrás de sua cabeça. Ele sentou na beira da cama, enquanto com os dentes desamarrava, ao mesmo tempo com cuidado e impaciência, o pequenino saco plástico.

Ela esticou o braço e abriu uma fresta na veneziana. Não moveu o corpo. Tateando, procurou o cigarro no pequeno criado mudo, sobre o qual estavam o rádio relógio, um abajur de lava verde, pequenos papéis, extratos de banco, meio copo de whisky com o gelo há muito derretido, um frasco plástico de calmantes, um frasco plástico de energéticos, um cinzeiro de metal azul, um celular, um mp3 player, uma pilha de livros já um tanto cobertos de pó, e nenhum maço de cigarros.

Sem olhar pra ela, ele ainda vasculhava algo mais na carteira, puxou a calça novamente, tirou um maço e o isqueiro de um dos bolsos da frente, levou o cigarro à boca, acendeu e estendeu-lhe a mão com o cigarro aceso entre os dedos, ainda sem olhar pra ela.
Tirou o cartão do banco da carteira, deixou sobre a ponta da cama ao lado do saquinho plástico, fechou a carteira, e hesitou por um segundo. Passou mão, devagar e firme, do peito ao ventre dela. Não pareceu satisfeito. Pegou sua camiseta do chão, e ainda sem olhar pra ela, lhe enxugou o colo, os seios e a barriga.
Ela levou um dos braços atrás da cabeça, e com o outro braço erguido segurando o cigarro, erguia também levemente seu queixo para soprar a fumaça que contribuía com o ar viciado e denso que preenchia o quarto.
Ele pegou o saquinho, e olhando-a nos olhos, despejou cuidadosamente o pó branco em uma linha que ia do umbigo até o meio das costelas, controlando a quantidade que caía com precisa alternância da pressão dos dedos. Ela encolheu a barriga e riu quase em silêncio com a fumaça do cigarro saindo de sua boca em velocidade desordenada. Tente não se mexer, ele disse, e com o cartão plástico perfilava a substância no sutil côncavo vertical no meio da barriga, enquanto ela travava os dentes e prendia o ar para não rir. Percorreu rapidamente o corpo dela com os olhos, voltou a cabeça para a beira da cama onde estava sentado, e num rápido movimento, agachou-se até sua carteira no chão, abriu, olhou o compartimento onde guardava o dinheiro, havia duas notas de dez e uma de dois, pensou por um instante, e pegou a de dois por lhe parecer a mais nova, embora isto fosse uma atitude pouco aceitável e nada inteligente. Deixou a carteira no chão, e de pé, olhou pra ela enquanto enrolava a nota com hábeis e rápidos movimentos de dedos. Pensou que aquela era uma bonita visão, embora também lhe causasse certo enfado. Abaixou-se sobre ela até ter seu rosto a meio palmo do vão dos seios, onde a pele parecia mais alva, e percorreu com a nota a linha que havia feito, e ela, que estava com o ar retido e com a barriga encolhida, não pôde evitar um suspiro que acabou por espalhar um pouco e fazer com que ficassem alguns resquícios dispersos sobre sua pele. Ele ergueu a cabeça, inspirou fundo e com força, e com as mãos apoiadas na cama, cada mão próxima a um dos flancos dela, olhou-a novamente, para novamente abaixar a cabeça e lamber verticalmente todo vestígio deixado, o que a fez soltar uma risada. Ele fez uma careta quando sentiu o gosto amargo, mas em seguida sua língua adormeceu e ele gostou de ter perdido o agridoce gosto de sexo que tinha na boca. Pousou a face contra o ventre dela por um instante, achou aquele gesto descabido, ela abaixou a mão para acariciar seus cabelos, mas antes que o tocasse, ele levantou e foi pegar o maço de cigarros. Pôs um no canto da boca, acendeu com uma só mão e jogou maço e isqueiro sobre a calça no chão. Passou por sobre as pernas dela até chegar ao outro lado da cama, onde se sentou tocando as costas na parede gelada, contraiu as espaldas até acostumar-se à temperatura, deu uma tragada e soltou a fumaça com um suspiro, recostando a cabeça.

Não quis pensar no desconforto da parede gelada, nem quis pensar no desconforto da situação, agora que os ânimos esfriavam; e não pensou no desconforto que o vento trazido pela persiana semi aberta causava no seu corpo semi nu. Não quis pensar em nada, até que viesse a lucidez esperada, que sempre vinha. Ela ainda fumava, embora agora já não o olhasse. Ela repousava a cabeça no travesseiro, com os olhos voltados para o teto, mas não olhava o teto propriamente, seu olhar o atravessava, seu olhar era como o olhar vítreo de algo recém morto.
Ele notou que suas mãos começavam a tremer, e sabia que não era pela parede, pela situação ou pelo vento, todos esses frios somados. Ainda se esforçava para evitar os pensamentos recorrentes.

Ele queria não sentir repulsa, ele queria não sentir remorso, ele queria não sentir ressaca, não a moral. Ele queria não sentir o desconforto de não querer estar onde se está, o onipresente desejo de ir embora, que nunca cessa. Mas ele sabia que viria.

Ele sabia que viria. Ele nunca sabe exatamente quando, a hora exata, mas sabe que sempre vem. Mesmo quando há os longos períodos de tempo sem vir, períodos de otimismo, entretenimento, negação, ou qualquer coisa assim, mesmo quando parecia que nunca mais voltaria, sempre houve algo no fundo que nunca se deixou convencer de que não viesse mais. Ele sabe exatamente a hora em que chega. Não há propriamente alguma mudança física, pelo menos não que ele consiga perceber, talvez seu olhar mude, talvez algum gesto seu se torne mais brando, mais sutil. A vera nuvem solitária, que troveja em sua cabeça como uma noite de ano-novo, o toque gelado e cadavérico de alguma deusa morta.
Às vezes com maior ou menor intensidade, às vezes mais ou menos fácil de abafar, postergar, dissimular, ou até aproveitar, mas sempre vem. E talvez sim, sempre virá. Às vezes ele fica grato, alguma vaidade sua aceita isso como parte ou fonte de qualquer brilho, às vezes só o faz sentir-se ridículo. Álcool, sexo, companhia, solidão, qualquer fuga, qualquer disfarce, qualquer placebo, nada evita, no máximo altera, transforma, mas sempre há o impacto, a estranheza, qualquer cortina cinzenta no olhar, qualquer cansaço nos gestos, qualquer peso no semblante, qualquer lucidez elaborada nos pensamentos.

Ela agora já apagou o cigarro, o cinzeiro de metal azul ainda solta fumaça, e apoiando-se com as duas mãos, ergue o tronco até recostar-se no travesseiro atrás dela, tirando suas pernas debaixo das pernas dele, porque já começavam a formigar. Não se conheciam há muito tempo, mas tampouco era sua primeira vez juntos, por isso ela sabia que freqüentemente, depois do sexo, ele ficava daquele jeito. E mesmo quando não era depois do sexo, às vezes ele era tomado daquilo, aquele jeito, e o melhor que ela podia fazer, isso já tinha aprendido, era não fazer perguntas demais, nem tentar conversar demais. Apesar de ser exatamente isso, esse jeito estranho e esse mistério intermitente o que mais a atraía nele, ele podia ficar agressivo, e não que houvesse qualquer violência física, mas as coisas que ele podia dizer eram tão desconcertantemente exatas e cruéis, que podiam causar mágoas difíceis de apagar. Levantou-se, pegou sua calcinha que estava no chão, em frente à porta do quarto, vestiu-a, olhou em volta, agachou sobre a calça dele, onde estavam a carteira, o saquinho, o cartão e a nota enrolada, levou-os ao criado mudo, abaixou-se e levantou em rápidos movimentos, pegou o copo de whisky e foi até a cozinha para enchê-lo novamente.

Ele a olhava em silêncio, e quando ficou sozinho no quarto, foi ao criado mudo, pois ela havia deixado para ele, e embora ele achasse que talvez fosse demais, enrolava rapidamente a nota enquanto abria a janela totalmente. Acendeu outro cigarro e apoiou os cotovelos sobre o parapeito. Ela voltou ao quarto com dois copos de whisky com gelo, e deu um a ele, que esforçou-se para assumir uma expressão quase cândida, com um meio sorriso na face, e beijou-a na testa, virando a cara logo em seguida. Ela sentou novamente na cama, e mesmo que não o olhasse, ele sabia que estava atenta a qualquer movimento seu, esperando o momento de voltarem a conversar.

Daquela janela do 14º andar, ele olhava os poucos carros que singravam a madrugada de céu púrpura, enquanto pensava no grande filho da puta que era, pois poderia mostrar um pouco mais de carinho pela garota deitada na cama, em silêncio, que notadamente gostava dele, mas em vez disso, ele obedecia a esta maldita síndrome ou sabe-se lá o quê que o fazia ser ríspido com qualquer pessoa que ousasse demonstrar afeto. Podia ter se virado e começado a conversar com ela, qualquer assunto ameno bastaria para ela, mas ao invés disso, continuou a olhar os carros, imaginando as pessoas dentro deles, sabendo que lhe viria à cabeça o que sempre vinha e viria, a ridícula e desnecessariamente perturbadora pergunta: “como conseguem?”.
E, como já não era mais assim tão jovem, e a puberdade já havia passado há uma década, pensar em coisas deste tipo não era nenhum questionamento saudável para a construção de uma personalidade, e sim um clichê recorrente, e exatamente a redundância desta expressão só servia para fazê-lo sentir-se mais ridículo e infantil.
De nada valeria pensar em que parte da sua vida ele escolheu ou foi levado a tomar este “caminho”, se é que houve algum divisor de águas, a sempre tomar distância de situações, acontecimentos, oportunidade ou crise, e analisar tudo, dividir, categorizar, comparar, sempre tentando encontrar padrões, e pateticamente sempre se esforçar ao máximo para não se ver completamente dentro de nenhum deles, nunca sentir, fugir sempre, querer ir embora, agora e sempre, agora.
Fechar-se cada vez mais, impondo aos outros testes, condições, provações, vestir-se de alguma aura qualquer, enclausurar-se em algum véu cada vez mais turvo, querendo que alguém o adivinhe, mas tornando isso mais difícil de acontecer, ano após ano. Embriagar-se em uma esperança romantizada, e nunca, nunca admitida, de que um dia será salvo, encontrado e resgatado por algo ou alguém que preencha os requisitos que cada vez mais aumentam e se tornam mais absurdos. E enquanto espera o impossível, seguir achando que não há ninguém que o mereça, porque toda esta lama que ele mesmo cria e se afunda lhe dá um sentimento oculto de superioridade – afinal, carregar tamanha maldição (mesmo que criada propositalmente) lhe confere um valor tão grande que não deve ser desperdiçado com qualquer um, seria dar pérolas aos porcos.

Ele abanou a cabeça, jogando o toco de cigarro com força para tentar acertar a calçada do lado oposto da rua, mas o vento que soprava só permitiu que caísse sobre a faixa dupla amarela do meio da pista. Voltou a olhar pra dentro do quarto, ela agora estava sentada sobre a cama, lendo um dos livros dele que estavam sobre o criado mudo. Era uma cena interessante, ela com Dostoiévski aberto no colo, e acima dela, na parede, diversos pequenos quadros, a capa de Abbey Road, a capa de Beggar´s Banket, Hemingway com um suéter de lã de marinheiros irlandeses, o quarto de Van Gogh, Ninfas e Sátiro de Bouguereau, Jeanne Moreau vestida de homem correndo em uma ponte. Esta visão, embora contivesse sua beleza, o fez pensar que ela não pertencia ao padrão das referências em volta dela. E como ele já estava tomado deste fluxo vicioso de pensamentos, reconheceu que esta era outra das partes dessa tal maldição. Além de manter-se inatingível, também colocava certas coisas, sonhos, objetos e pessoas em um patamar nunca possível de ser alcançado, por qualquer motivo ou obstáculo que houvesse ou fosse por ele próprio inventado. Mais um conflito ilógico ao qual se infligia, para gerar uma auto-sabotagem constante que justificava o apego à tristeza, à melancolia e ao tormento. Porque embora não houvesse sentido em todo este processo, ele acabava por torná-lo superior, mais sábio, mais sério, mais inteligente, uma vez que toda a constante observação e análise ampliavam a sua visão, e eram fruto dela.
Observá-la agora, sentada, nua, serena, talvez sem fazer idéia do que se passava pela cabeça dele - embora o respeitasse - fez com que ele sentisse maior essa distância que lhe permitia tais percepções. Voltou-se novamente à janela, pois lhe queimava esta inveja que, embora jamais assumisse por completo, sentia da alegria, simplicidade, e satisfações que as pessoas que ele considerava simplórias e ignorantes conseguiam obter. Ele não as conseguia, e era o que, ainda secretamente, mais almejava.

Debruçou-se mais sobre o parapeito, para sentir mais o vento no rosto, enquanto fechava os olhos com força e cerrava os dentes, pois sabia que era dessa inveja suprimida que vinha o ódio que o acompanhava há muito, a revolta que tornava cáustico o sangue nas veias, o sentimento de estar sempre sendo injustiçado, já que acreditava ser melhor, e mais merecedor do que estas outras pessoas. Tudo isso que era gerado dentro dele, aliado à Inteligência que ele indiscutivelmente tinha, ainda que limitada, fazia-o chegar à constatação de que de alguma forma entendia algo essencial sobre a vida, e que existia alguma lógica oculta nesta tal injustiça que sofria. Esta lógica era o que criava sua Inteligência e lhe dava sua visão, e os produtos desta lógica eram também o que o impedia de ter as coisas simples que queria, pois o impedia de ser simples como elas.
Todas essas dualidades que bailavam dentro dele geravam naturalmente uma escolha constante, e sua vaidade sempre o levava a escolher o lado mais sombrio, pois embora este lado tivesse menos benefícios práticos, tomar este caminho era o que lhe trazia o seu brilho, deste suposto brilho vinha o seu orgulho, e seu orgulho o mantinha neste eterno ciclo doentio.

Todas estas linhas de pensamento começavam a fazer doer sua cabeça, como se algo a pressionasse pelas frontes, e percebeu que apertava a mão que segurava o copo que agora só continha os restos do gelo que derretia. Pousou o copo sobre o criado mudo, pegou o pequeno saco plástico, o cartão e a nota enrolada, repetiu novamente a conhecida operação, debruçou-se sobre o móvel, ergueu a cabeça olhando para o teto e aspirando com força, e girando o tronco, de joelhos, projetou-se sobre ela mordendo sua coxa. Ela deu um grito, e com o susto suspendeu as duas pernas, ele apoiou suas mãos sobre as coxas dela abaixando-as novamente, e com este movimento ergueu a cabeça até beijá-la subitamente, para que a forma violenta e inesperada do carinho demonstrado conferisse mais valor ao gesto. Tudo isto aconteceu numa fração de segundo, e passado o susto inicial, ainda com as bocas coladas, ela riu e deu-lhe um tapa no ombro. Ele afastou a cabeça um pouco, olhou-a nos olhos, e sorriu brejeiramente. O sorriso dela se estreitou, e ela disse – Às vezes você me assusta um pouco. Ele já estava novamente de pé, com seu copo vazio na mão, e enquanto atravessava a porta saindo do quarto, respondeu – Talvez seja essa a intenção.

Atravessou a sala no escuro, tateando com a mão direita a parede que o levaria até a cozinha, acendeu a luz, colocou o copo na pia, seguiu até a área de serviço, entrou no pequeno banheiro que só usava em ocasiões específicas, abriu a minúscula janela, ajoelhou no chão sobre a privada, enfiou o dedo mínimo na goela uma, duas, três, quatro vezes até conseguir vomitar, fez força até que a ânsia passasse, enfiou o dedo mais uma vez, sentiu as tripas revolverem-se sem ter nada mais o que expulsar, aguardou alguns segundos, levantou-se e deu descarga. Enxaguou a boca repetidas vezes, lavou o rosto, e olhou seu rosto pálido e seus olhos vermelhos no espelho. A imagem já lhe era um tanto familiar, quase lhe causava algum prazer não confessado.
Hipnotizado pelo seu reflexo, reconheceu em seu próprio olhar uma expressão de reprovação, de saber que todos esses conflitos se faziam ainda mais ridículos por serem inúteis. Afinal, todas estas constatações de dubiedades só eram possíveis porque já existia, desde sempre, a capacidade de enxergar diferentes lados. Ou seja, o processo se invertia, já que esta tal visão era causadora dos conflitos, e não conseqüência deles. E isto tornava tudo inevitável, indiferente a qualquer questionamento. E era neste esclarecimento que residia o cerne da angústia, afinal, ser simplório, segundo a linha de pensamento que adotava, além de tornar possível conseguir as coisas que ele se obrigava a desdenhar, ainda parecia trazer paz de espírito, porque uma vez que se desconhece qualquer possibilidade de ser algo diferente, se está naturalmente livre da agonia de ficar analisando, comparando e sofrendo com escolhas.
Saiu do banheiro deixando a porta entreaberta, atravessou a área de serviço e deteve-se na cozinha. Olhou a garrafa de whisky em cima do balcão em frente à pia, e sentiu seu estômago se contorcer outra vez. Respirou fundo, colocou a garrafa em cima da pia, abriu o congelador, retirou a forma de gelo, torceu-a, deixou cair algumas pedras sobre a pia, guardou a forma de volta, colocou três pedras de gelo em cada copo, colocou o whisky até o líquido ficar um dedo acima das pedras. Despejou um pouco de água da torneira dentro do seu copo e foi caminhando pela sala escura, tateando com o cotovelo a parede que o guiaria de volta ao quarto. O ar ainda lhe parecia carregado, pesado, preenchido de algo. Ela agora estava deitada de bruços sobre a cama, lendo, balançando os pés verticalmente. Ele colocou os dois copos sobre o criado mudo, debruçou-se sobre o móvel mais uma vez, ergue-se e tomou um gole que lhe pareceu agressivo.
Deitou-se de lado no espaço que restava da cama, no vão das pernas dela, e repousou o rosto sobre suas nádegas. Ela fez qualquer comentário ao qual ele não ouviu, e respondeu com um grunhido. Sem mexer a cabeça, olhou pela janela e percebeu que dali podia ver a lua, que aparecia no único vão descoberto do céu carregado de nuvens. Era minguante, e lhe trouxe certa tranqüilidade saber que podia distinguir coisas assim, simples e antigas.
Pensou que, toda essa confusão que - inutilmente ou não – há muito tempo lhe perturbava a cabeça inúmeras vezes, se tornava mais odiosa através dos anos. Se no começo, digamos ao sair da infância, essa confusão talvez também o fizesse sentir-se diferente, especial de alguma forma, essa impressão foi se deteriorando com a idade, maturidade, ou simplesmente o passar do tempo. Ao longo da vida, ele foi descobrindo em outras pessoas, em livros, canções ou qualquer obra, e mesmo em gestos, elementos desta mesma confusão, e percebendo que talvez ele não fosse assim tão diferente porra nenhuma. E sim que este sentimento de deslocamento é parte deste padrão em que ele está incluído. Sim, era isso, e perceber isso também trazia o sentimento de ridículo, jogando-o de volta ao redemoinho caótico que em noites como essa ele se deixava consumir.
Tal constatação não lhe trazia nenhum conforto pela identificação, e sim, outra vez, repulsa. Porque percebia que era e fazia parte de algo que sempre tentava escapar, dizendo a si mesmo – Você é também um clichê, você é daqueles que se acham diferentes ou especiais, mas você não é, vocês não são, nós não somos. Para nosso azar e maldição, estamos sim encaixados em um padrão, em vários deles, aliás.

Ela disse qualquer outra coisa que ele não ouviu, mas ergueu-se pra que ela se movesse e mudasse de posição sobre a cama. Ela sentou-se novamente com as costas contra os travesseiros, e apontou um quadro no alto da parede. O quadro havia sido pintado por ele, há muitos anos, e ela fez um elogio. Ele, agora com a cabeça deitada entre os pés dela, olhou a pintura e sorriu levemente, aquele desenho parecia não ter mais nada de familiar.
Este clichê, esta categoria na qual se encontrava também poderia ter algo de bom, ele pensava. De certa forma, força a buscar sempre o novo, algo que você ainda não fez, ou algo que julga que não tenha sido feito. Mas esta constante busca por diferenciação, a eterna tentativa de fuga do óbvio também gerava naturalmente sua angústia. Termina por sempre gerar alguma cobrança, uma sensação de se estar desperdiçando algo de si mesmo, pois já que você identifica este mesmo gen que você leva dentro de si em pessoas que você considera brilhantes, que realizaram e tiveram o que você gostaria, você é novamente jogado ao maldito ciclo – sensação de injustiça,e pior: a identificação deste padrão em si mesmo e em outros conduz, nesta espiral diabólica, à esperança não admitida de que ainda terá sua chance, ainda vai brilhar, ainda vai ser salvo, ainda vai ter paz de espírito, porque outros já o tiveram.

Ele ouve um trovão distante, e levanta-se da cama. Pega seu maço de cigarros sobre o criado mudo, acende um e vai até a janela uma outra vez. O céu não parece mais tão púrpura, assumiu agora um tom mais acinzentado, e ele já começa a sentir o cheiro da chuva que virá. Ela vira-se de bruços outra vez, apoiando-se sobre os cotovelos para ler o livro sobre o travesseiro. Ele a observa, esforçando-se para sentir qualquer coisa agradável. Sua cara de compenetrada, a franja de cabelos negros que cai por sobre metade da testa dela, a pele alva dos ombros, a linha perfeita que desce das costas até a cintura, para novamente ascender na bunda pequena e arredondada, riscada pela fina calcinha rosa de algodão. Ele se esforça pra se convencer de algo. De que era de fato algo agradável.

Toda essa merda que ele trazia dentro de si fazia com que ele colocasse a maioria das pessoas com as quais tinha contato em duas categorias.

As que o admiravam, e a sua eterna auto sabotagem o fazia julgá-las inferiores a ele, e por isso as desprezava, e por isso as odiava.

As que ele admirava, e a sua eterna auto sabotagem o fazia julgar-se inferior a elas, e por isso as invejava, e por isso as odiava.

Ele sabia, desde que a tinha conhecido, que ela tinha sido incluída na primeira categoria,e esta qualificação era o que determinava o tratamento que ele dispensava a ela. E era esta sensação que ele tentava evitar desde o momento em que a luz lhe pareceu clara demais. Voltou-se para a janela, o céu agora estava ainda mais escuro, jogou o toco de cigarro com força para tentar acertar a calçada do lado oposto da rua, mas a chuva que começava a cair pesadamente só permitiu que caísse sobre a calçada logo abaixo do parapeito, rolando pela sarjeta com a enxurrada que começava.

Ela já havia deixado o livro de lado, continuava deitada de bruços, com a cabeça sobre os braços cruzados. Ele deitou por cima dela, beijando-lhe o ombro, o pescoço, afastou os cabelos da nuca dela e viu uma pequena tatuagem, um sol estilizado, logo abaixo da linha onde termina o cabelo, que nunca havia notado antes. Continuou beijando as costas e foi descendo, beijo, língua, saliva, brilho, visco, até a cintura, ela começava a suspirar. O barulho da chuva parecia mais forte, o ar dentro do quarto parecia mais denso, e ele agora beijava a bunda dela, com os dedos percorrendo embaixo do algodão rosa da pequena calcinha, pele, tecido, odor seiva, e ela começava a gemer baixinho. Ficou de joelhos na ponta da cama, e com um movimento único puxou a calcinha, jogando pra trás sem olhar. Apertou a cintura dela, uma mão em cada lado, notando a marca rosada que a pressão dos dedos fazia na pele clara. Ergueu-a até ela apoiar os joelhos na cama, ela abriu-se, lilás,veludo, e ele começou a penetrá-la com cada vez mais força, som abafado, grito contido, visão turva, não mais percebia a luz, fazia parte agora da densa névoa que preenchia o quarto,e a última coisa que pôde ouvir, antes de deixar-se dominar pela lisergia que o ato lhe causava, foi o barulho de uma colisão de carros lá fora na rua.