Não é nem o espaço, que, agora escasso, me limita. Ou essa vida de agora, que imita vida, que vai embora, que aumenta dúvida, que irrita, que se demora. A falta que me faz o céu de todos os dias, a paz vespertina das esquinas, o silêncio repentino das madrugadas. Ou o boa noite calado pras luas de todas as noites, a calma que me cobria de veludo, não é a falta disso tudo o que me rasga. Nem o convívio com toda essa gente, esses comportamentos condicionados, se sabendo vigiados. O perigo do olhar insuspeito vindo da janela, o barulho do vizinho.
O que me dá mais saudade de morar em casa é ter um passarinho. Um canário, real ou da terra. Quando ele canta quando acha que ninguém está perto. Aquele trinado longo, que fura o dia, que assusta e preenche, que vira silêncio quando não mais surpreende. Eu tive canários a minha vida inteira, e um deles inclusive acostumou-se a cantar enquanto eu tocava violão embaixo de sua gaiola.
A rotina de limpar a gaiola. Tirar a gaveta que serve de chão da pequena jaula. Trocar diariamente a folha de jornal, colocando uma folha nova, cortada e dobrada da maneira que aprendi com meu pai, processo exato, ritual silencioso. Tirar a gaveta lateral, estreita, coberta com uma fina tira de madeira com buracos redondos e largos, para o pássaro comer o alpiste dentro dela. Assoprar levemente as cascas deixadas, colocar o jiló cortado ao meio num canto, trocar a água da tigelinha, prender o almeirão em cima, quebrando-lhe o talo entre as grades da gaiola. E ver o bichinho feliz, ou ainda, ser capaz de enxergar-lhe a felicidade, batendo as asinhas sobre a água fresca. Ver o bichinho encolhido de noite, imóvel sobre o poleiro mais alto, mas com os olhos sempre atentos. Aquelas duas bolinhas pretas, brilhantes e pequenininhas, te olhando e mexendo a cabeça de modo curioso, olhar ao mesmo tempo fixo e alheio, à sua maneira profundo, parece que sempre estranhando este feio e furioso mundo.
Eu me lembro de um dia em especial. Um churrasco, à tarde, num apartamento, amigos se apertando num domingo lento. Eu sempre fico um pouco alheio em festas, perdido em tudo, fingindo algo, preenchendo com álcool o que me falta. A festa já se adiantava quando eu ouvi um canto de canarinho, perto, tão próximo que só poderia ter vindo de dentro do lugar. Fui andando pelo apartamento, atravessei alguns cômodos, até chegar no último quarto, que tinha uma sacada. Na parede desta sacada havia uma gaiola pendurada. Era um canarinho da terra, verde escuro, com manchas quase negras, penas desgrenhadas no topo de sua cabeça indicando a recente muda de fins da quaresma. Cantava sozinho, talvez pra rua lá embaixo, talvez pro trecho de céu que era possível ver entre os prédios em frente, ou somente o fazia de si para si. Fiquei observando um tempo, encostado à parede, tentando fazer com que ele não notasse minha presença. Eu havia aprendido, anos antes, a brincar de falar com eles, os canários. Um assobio em três partes, grave, agudo, grave, curto e rápido. Eu assobiei sabendo o que ia acontecer. Assim que me ouviu, o pássaro cessou seu canto, alerta, ainda sem me ver. Andando devagar, sem gestos bruscos, me pus em frente a ele. Deixei que ele me olhasse por alguns instantes. Ele pulava entre os dois poleiros da gaiola, me avaliando. Não ousei erguer as mãos, nem me aproximar demais. Assobiei outra vez. Ele agora me observava imóvel.
Passarinhos são desconfiados. Também acham estranho toda essa gente. Demoram, ou nunca baixam a guarda. Por isso, sei que tem que insistir. Recostei-me de lado na parede, mantendo certa distância, assobiando com pausas regulares. No começo, ele olhava e virava a cabeça, estranhando. Com o tempo (uns 10 minutos assobiando), ele entendeu. E começou aos poucos. Assobiando uma nota apenas, curta e rápida. Comecei a imitá-lo, esforçando-me, da maneira que é possível um ser humano imitar um passarinho. Aos poucos, fui adaptando meu assovio ao dele, e gradativamente tornando-o mais longo para que ele me seguisse. E assim, nos sincronizamos. Eu assobiava, fufí-fiu, e ele respondia igualzinho. Calei-me satisfeito, e ele, para me presentear ou para deixar claro quem era o melhor, voltou a cantar como fazia antes de eu perturbá-lo, um trinado longo furando o dia, preenchendo algo que talvez faltasse.
Quando me virei, ela estava na porta, me olhando e sorrindo com um sorriso que nunca tinha visto nela. “Acho que foi uma das coisas mais bonitas que eu já vi” - ela me disse. Eu sorri, e olhando pra ela ali parada, pensei a mesma coisa. Eu não sabia que seria uma das últimas vezes que eu a veria.
Todos esses anos depois, o que eu tenho mais saudade é dos passarinhos.
sábado, 4 de julho de 2009
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Um comentário:
Gosto desse humor, quase Manuel Bandeira, quase ingênuo ou com uma nostalgia disso, mas com um cinismo que só sei lá quem de bom.
Interessante ver as rimas internas na prosa, sambando aqui e ali na tristeza, mas desaparecidas quando a tristeza vai embora e só fica o canto dodecafônico do bicho pássaro.
Já está colecionando pra um grande livro de contos hein....
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