sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Ela ganhou um conto sem saber

A mulher que eu olho agora fala espanhol, enquanto fuma, elegante como uma serpente. O braço reto, vertical, cabelos negros sobre a blusa de lã verde, e a garrafa de cerveja cuzqueña sobre a mesa.

Todos à minha volta pensam em línguas diferentes da minha.

Começou como tensão, os músculos da perna rijos, e o coração lançando mais sangue do que as veias pedem. A bênção etérea dos calmantes a dissolveu, e eu pude observar maravilhado os picos das montanhas cobertos de neve. Soy latino.

Ela agora não fuma nem bebe, apenas apóia a cabeça sobre o punho enquanto olha pro nada, e eu me lembro que tive que atravessar um continente só pra ver a mesma babilônia. Na confusão de dois dias sem dormir, entre alguns países, eu também não sei em que língua penso.

Talvez na língua dela, que leva em si o hálito de tudo o que eu finjo entender e nunca (v)terei.

De repente a luz lhe pareceu clara demais

De repente a luz lhe pareceu clara demais, amarela demais, demasiada. Fechou a boca que arquejava, semicerrou os olhos que a claridade feria, e de palma aberta, passou a mão do peito ao ventre, para tirar o suor. Sua pele alva de meses sem sol, juntamente com a viscosidade e o brilho úmido gerado pelo esforço físico lhe fez vir à mente qualquer sensação de desperdício. A visão de seu pau, avermelhado e inchado, também não lhe agradou. Ergueu as costas, deu a volta por cima dela, que ainda tinha os olhos fechados e alguns fios de cabelo desgrenhado no rosto, e saiu da cama. Vestiu a cueca e procurou a carteira na calça jogada no chão. Ela abriu os olhos, tirou os cabelos do rosto, e puxou o travesseiro, que estava no chão, pra detrás de sua cabeça. Ele sentou na beira da cama, enquanto com os dentes desamarrava, ao mesmo tempo com cuidado e impaciência, o pequenino saco plástico.

Ela esticou o braço e abriu uma fresta na veneziana. Não moveu o corpo. Tateando, procurou o cigarro no pequeno criado mudo, sobre o qual estavam o rádio relógio, um abajur de lava verde, pequenos papéis, extratos de banco, meio copo de whisky com o gelo há muito derretido, um frasco plástico de calmantes, um frasco plástico de energéticos, um cinzeiro de metal azul, um celular, um mp3 player, uma pilha de livros já um tanto cobertos de pó, e nenhum maço de cigarros.

Sem olhar pra ela, ele ainda vasculhava algo mais na carteira, puxou a calça novamente, tirou um maço e o isqueiro de um dos bolsos da frente, levou o cigarro à boca, acendeu e estendeu-lhe a mão com o cigarro aceso entre os dedos, ainda sem olhar pra ela.
Tirou o cartão do banco da carteira, deixou sobre a ponta da cama ao lado do saquinho plástico, fechou a carteira, e hesitou por um segundo. Passou mão, devagar e firme, do peito ao ventre dela. Não pareceu satisfeito. Pegou sua camiseta do chão, e ainda sem olhar pra ela, lhe enxugou o colo, os seios e a barriga.
Ela levou um dos braços atrás da cabeça, e com o outro braço erguido segurando o cigarro, erguia também levemente seu queixo para soprar a fumaça que contribuía com o ar viciado e denso que preenchia o quarto.
Ele pegou o saquinho, e olhando-a nos olhos, despejou cuidadosamente o pó branco em uma linha que ia do umbigo até o meio das costelas, controlando a quantidade que caía com precisa alternância da pressão dos dedos. Ela encolheu a barriga e riu quase em silêncio com a fumaça do cigarro saindo de sua boca em velocidade desordenada. Tente não se mexer, ele disse, e com o cartão plástico perfilava a substância no sutil côncavo vertical no meio da barriga, enquanto ela travava os dentes e prendia o ar para não rir. Percorreu rapidamente o corpo dela com os olhos, voltou a cabeça para a beira da cama onde estava sentado, e num rápido movimento, agachou-se até sua carteira no chão, abriu, olhou o compartimento onde guardava o dinheiro, havia duas notas de dez e uma de dois, pensou por um instante, e pegou a de dois por lhe parecer a mais nova, embora isto fosse uma atitude pouco aceitável e nada inteligente. Deixou a carteira no chão, e de pé, olhou pra ela enquanto enrolava a nota com hábeis e rápidos movimentos de dedos. Pensou que aquela era uma bonita visão, embora também lhe causasse certo enfado. Abaixou-se sobre ela até ter seu rosto a meio palmo do vão dos seios, onde a pele parecia mais alva, e percorreu com a nota a linha que havia feito, e ela, que estava com o ar retido e com a barriga encolhida, não pôde evitar um suspiro que acabou por espalhar um pouco e fazer com que ficassem alguns resquícios dispersos sobre sua pele. Ele ergueu a cabeça, inspirou fundo e com força, e com as mãos apoiadas na cama, cada mão próxima a um dos flancos dela, olhou-a novamente, para novamente abaixar a cabeça e lamber verticalmente todo vestígio deixado, o que a fez soltar uma risada. Ele fez uma careta quando sentiu o gosto amargo, mas em seguida sua língua adormeceu e ele gostou de ter perdido o agridoce gosto de sexo que tinha na boca. Pousou a face contra o ventre dela por um instante, achou aquele gesto descabido, ela abaixou a mão para acariciar seus cabelos, mas antes que o tocasse, ele levantou e foi pegar o maço de cigarros. Pôs um no canto da boca, acendeu com uma só mão e jogou maço e isqueiro sobre a calça no chão. Passou por sobre as pernas dela até chegar ao outro lado da cama, onde se sentou tocando as costas na parede gelada, contraiu as espaldas até acostumar-se à temperatura, deu uma tragada e soltou a fumaça com um suspiro, recostando a cabeça.

Não quis pensar no desconforto da parede gelada, nem quis pensar no desconforto da situação, agora que os ânimos esfriavam; e não pensou no desconforto que o vento trazido pela persiana semi aberta causava no seu corpo semi nu. Não quis pensar em nada, até que viesse a lucidez esperada, que sempre vinha. Ela ainda fumava, embora agora já não o olhasse. Ela repousava a cabeça no travesseiro, com os olhos voltados para o teto, mas não olhava o teto propriamente, seu olhar o atravessava, seu olhar era como o olhar vítreo de algo recém morto.
Ele notou que suas mãos começavam a tremer, e sabia que não era pela parede, pela situação ou pelo vento, todos esses frios somados. Ainda se esforçava para evitar os pensamentos recorrentes.

Ele queria não sentir repulsa, ele queria não sentir remorso, ele queria não sentir ressaca, não a moral. Ele queria não sentir o desconforto de não querer estar onde se está, o onipresente desejo de ir embora, que nunca cessa. Mas ele sabia que viria.

Ele sabia que viria. Ele nunca sabe exatamente quando, a hora exata, mas sabe que sempre vem. Mesmo quando há os longos períodos de tempo sem vir, períodos de otimismo, entretenimento, negação, ou qualquer coisa assim, mesmo quando parecia que nunca mais voltaria, sempre houve algo no fundo que nunca se deixou convencer de que não viesse mais. Ele sabe exatamente a hora em que chega. Não há propriamente alguma mudança física, pelo menos não que ele consiga perceber, talvez seu olhar mude, talvez algum gesto seu se torne mais brando, mais sutil. A vera nuvem solitária, que troveja em sua cabeça como uma noite de ano-novo, o toque gelado e cadavérico de alguma deusa morta.
Às vezes com maior ou menor intensidade, às vezes mais ou menos fácil de abafar, postergar, dissimular, ou até aproveitar, mas sempre vem. E talvez sim, sempre virá. Às vezes ele fica grato, alguma vaidade sua aceita isso como parte ou fonte de qualquer brilho, às vezes só o faz sentir-se ridículo. Álcool, sexo, companhia, solidão, qualquer fuga, qualquer disfarce, qualquer placebo, nada evita, no máximo altera, transforma, mas sempre há o impacto, a estranheza, qualquer cortina cinzenta no olhar, qualquer cansaço nos gestos, qualquer peso no semblante, qualquer lucidez elaborada nos pensamentos.

Ela agora já apagou o cigarro, o cinzeiro de metal azul ainda solta fumaça, e apoiando-se com as duas mãos, ergue o tronco até recostar-se no travesseiro atrás dela, tirando suas pernas debaixo das pernas dele, porque já começavam a formigar. Não se conheciam há muito tempo, mas tampouco era sua primeira vez juntos, por isso ela sabia que freqüentemente, depois do sexo, ele ficava daquele jeito. E mesmo quando não era depois do sexo, às vezes ele era tomado daquilo, aquele jeito, e o melhor que ela podia fazer, isso já tinha aprendido, era não fazer perguntas demais, nem tentar conversar demais. Apesar de ser exatamente isso, esse jeito estranho e esse mistério intermitente o que mais a atraía nele, ele podia ficar agressivo, e não que houvesse qualquer violência física, mas as coisas que ele podia dizer eram tão desconcertantemente exatas e cruéis, que podiam causar mágoas difíceis de apagar. Levantou-se, pegou sua calcinha que estava no chão, em frente à porta do quarto, vestiu-a, olhou em volta, agachou sobre a calça dele, onde estavam a carteira, o saquinho, o cartão e a nota enrolada, levou-os ao criado mudo, abaixou-se e levantou em rápidos movimentos, pegou o copo de whisky e foi até a cozinha para enchê-lo novamente.

Ele a olhava em silêncio, e quando ficou sozinho no quarto, foi ao criado mudo, pois ela havia deixado para ele, e embora ele achasse que talvez fosse demais, enrolava rapidamente a nota enquanto abria a janela totalmente. Acendeu outro cigarro e apoiou os cotovelos sobre o parapeito. Ela voltou ao quarto com dois copos de whisky com gelo, e deu um a ele, que esforçou-se para assumir uma expressão quase cândida, com um meio sorriso na face, e beijou-a na testa, virando a cara logo em seguida. Ela sentou novamente na cama, e mesmo que não o olhasse, ele sabia que estava atenta a qualquer movimento seu, esperando o momento de voltarem a conversar.

Daquela janela do 14º andar, ele olhava os poucos carros que singravam a madrugada de céu púrpura, enquanto pensava no grande filho da puta que era, pois poderia mostrar um pouco mais de carinho pela garota deitada na cama, em silêncio, que notadamente gostava dele, mas em vez disso, ele obedecia a esta maldita síndrome ou sabe-se lá o quê que o fazia ser ríspido com qualquer pessoa que ousasse demonstrar afeto. Podia ter se virado e começado a conversar com ela, qualquer assunto ameno bastaria para ela, mas ao invés disso, continuou a olhar os carros, imaginando as pessoas dentro deles, sabendo que lhe viria à cabeça o que sempre vinha e viria, a ridícula e desnecessariamente perturbadora pergunta: “como conseguem?”.
E, como já não era mais assim tão jovem, e a puberdade já havia passado há uma década, pensar em coisas deste tipo não era nenhum questionamento saudável para a construção de uma personalidade, e sim um clichê recorrente, e exatamente a redundância desta expressão só servia para fazê-lo sentir-se mais ridículo e infantil.
De nada valeria pensar em que parte da sua vida ele escolheu ou foi levado a tomar este “caminho”, se é que houve algum divisor de águas, a sempre tomar distância de situações, acontecimentos, oportunidade ou crise, e analisar tudo, dividir, categorizar, comparar, sempre tentando encontrar padrões, e pateticamente sempre se esforçar ao máximo para não se ver completamente dentro de nenhum deles, nunca sentir, fugir sempre, querer ir embora, agora e sempre, agora.
Fechar-se cada vez mais, impondo aos outros testes, condições, provações, vestir-se de alguma aura qualquer, enclausurar-se em algum véu cada vez mais turvo, querendo que alguém o adivinhe, mas tornando isso mais difícil de acontecer, ano após ano. Embriagar-se em uma esperança romantizada, e nunca, nunca admitida, de que um dia será salvo, encontrado e resgatado por algo ou alguém que preencha os requisitos que cada vez mais aumentam e se tornam mais absurdos. E enquanto espera o impossível, seguir achando que não há ninguém que o mereça, porque toda esta lama que ele mesmo cria e se afunda lhe dá um sentimento oculto de superioridade – afinal, carregar tamanha maldição (mesmo que criada propositalmente) lhe confere um valor tão grande que não deve ser desperdiçado com qualquer um, seria dar pérolas aos porcos.

Ele abanou a cabeça, jogando o toco de cigarro com força para tentar acertar a calçada do lado oposto da rua, mas o vento que soprava só permitiu que caísse sobre a faixa dupla amarela do meio da pista. Voltou a olhar pra dentro do quarto, ela agora estava sentada sobre a cama, lendo um dos livros dele que estavam sobre o criado mudo. Era uma cena interessante, ela com Dostoiévski aberto no colo, e acima dela, na parede, diversos pequenos quadros, a capa de Abbey Road, a capa de Beggar´s Banket, Hemingway com um suéter de lã de marinheiros irlandeses, o quarto de Van Gogh, Ninfas e Sátiro de Bouguereau, Jeanne Moreau vestida de homem correndo em uma ponte. Esta visão, embora contivesse sua beleza, o fez pensar que ela não pertencia ao padrão das referências em volta dela. E como ele já estava tomado deste fluxo vicioso de pensamentos, reconheceu que esta era outra das partes dessa tal maldição. Além de manter-se inatingível, também colocava certas coisas, sonhos, objetos e pessoas em um patamar nunca possível de ser alcançado, por qualquer motivo ou obstáculo que houvesse ou fosse por ele próprio inventado. Mais um conflito ilógico ao qual se infligia, para gerar uma auto-sabotagem constante que justificava o apego à tristeza, à melancolia e ao tormento. Porque embora não houvesse sentido em todo este processo, ele acabava por torná-lo superior, mais sábio, mais sério, mais inteligente, uma vez que toda a constante observação e análise ampliavam a sua visão, e eram fruto dela.
Observá-la agora, sentada, nua, serena, talvez sem fazer idéia do que se passava pela cabeça dele - embora o respeitasse - fez com que ele sentisse maior essa distância que lhe permitia tais percepções. Voltou-se novamente à janela, pois lhe queimava esta inveja que, embora jamais assumisse por completo, sentia da alegria, simplicidade, e satisfações que as pessoas que ele considerava simplórias e ignorantes conseguiam obter. Ele não as conseguia, e era o que, ainda secretamente, mais almejava.

Debruçou-se mais sobre o parapeito, para sentir mais o vento no rosto, enquanto fechava os olhos com força e cerrava os dentes, pois sabia que era dessa inveja suprimida que vinha o ódio que o acompanhava há muito, a revolta que tornava cáustico o sangue nas veias, o sentimento de estar sempre sendo injustiçado, já que acreditava ser melhor, e mais merecedor do que estas outras pessoas. Tudo isso que era gerado dentro dele, aliado à Inteligência que ele indiscutivelmente tinha, ainda que limitada, fazia-o chegar à constatação de que de alguma forma entendia algo essencial sobre a vida, e que existia alguma lógica oculta nesta tal injustiça que sofria. Esta lógica era o que criava sua Inteligência e lhe dava sua visão, e os produtos desta lógica eram também o que o impedia de ter as coisas simples que queria, pois o impedia de ser simples como elas.
Todas essas dualidades que bailavam dentro dele geravam naturalmente uma escolha constante, e sua vaidade sempre o levava a escolher o lado mais sombrio, pois embora este lado tivesse menos benefícios práticos, tomar este caminho era o que lhe trazia o seu brilho, deste suposto brilho vinha o seu orgulho, e seu orgulho o mantinha neste eterno ciclo doentio.

Todas estas linhas de pensamento começavam a fazer doer sua cabeça, como se algo a pressionasse pelas frontes, e percebeu que apertava a mão que segurava o copo que agora só continha os restos do gelo que derretia. Pousou o copo sobre o criado mudo, pegou o pequeno saco plástico, o cartão e a nota enrolada, repetiu novamente a conhecida operação, debruçou-se sobre o móvel, ergueu a cabeça olhando para o teto e aspirando com força, e girando o tronco, de joelhos, projetou-se sobre ela mordendo sua coxa. Ela deu um grito, e com o susto suspendeu as duas pernas, ele apoiou suas mãos sobre as coxas dela abaixando-as novamente, e com este movimento ergueu a cabeça até beijá-la subitamente, para que a forma violenta e inesperada do carinho demonstrado conferisse mais valor ao gesto. Tudo isto aconteceu numa fração de segundo, e passado o susto inicial, ainda com as bocas coladas, ela riu e deu-lhe um tapa no ombro. Ele afastou a cabeça um pouco, olhou-a nos olhos, e sorriu brejeiramente. O sorriso dela se estreitou, e ela disse – Às vezes você me assusta um pouco. Ele já estava novamente de pé, com seu copo vazio na mão, e enquanto atravessava a porta saindo do quarto, respondeu – Talvez seja essa a intenção.

Atravessou a sala no escuro, tateando com a mão direita a parede que o levaria até a cozinha, acendeu a luz, colocou o copo na pia, seguiu até a área de serviço, entrou no pequeno banheiro que só usava em ocasiões específicas, abriu a minúscula janela, ajoelhou no chão sobre a privada, enfiou o dedo mínimo na goela uma, duas, três, quatro vezes até conseguir vomitar, fez força até que a ânsia passasse, enfiou o dedo mais uma vez, sentiu as tripas revolverem-se sem ter nada mais o que expulsar, aguardou alguns segundos, levantou-se e deu descarga. Enxaguou a boca repetidas vezes, lavou o rosto, e olhou seu rosto pálido e seus olhos vermelhos no espelho. A imagem já lhe era um tanto familiar, quase lhe causava algum prazer não confessado.
Hipnotizado pelo seu reflexo, reconheceu em seu próprio olhar uma expressão de reprovação, de saber que todos esses conflitos se faziam ainda mais ridículos por serem inúteis. Afinal, todas estas constatações de dubiedades só eram possíveis porque já existia, desde sempre, a capacidade de enxergar diferentes lados. Ou seja, o processo se invertia, já que esta tal visão era causadora dos conflitos, e não conseqüência deles. E isto tornava tudo inevitável, indiferente a qualquer questionamento. E era neste esclarecimento que residia o cerne da angústia, afinal, ser simplório, segundo a linha de pensamento que adotava, além de tornar possível conseguir as coisas que ele se obrigava a desdenhar, ainda parecia trazer paz de espírito, porque uma vez que se desconhece qualquer possibilidade de ser algo diferente, se está naturalmente livre da agonia de ficar analisando, comparando e sofrendo com escolhas.
Saiu do banheiro deixando a porta entreaberta, atravessou a área de serviço e deteve-se na cozinha. Olhou a garrafa de whisky em cima do balcão em frente à pia, e sentiu seu estômago se contorcer outra vez. Respirou fundo, colocou a garrafa em cima da pia, abriu o congelador, retirou a forma de gelo, torceu-a, deixou cair algumas pedras sobre a pia, guardou a forma de volta, colocou três pedras de gelo em cada copo, colocou o whisky até o líquido ficar um dedo acima das pedras. Despejou um pouco de água da torneira dentro do seu copo e foi caminhando pela sala escura, tateando com o cotovelo a parede que o guiaria de volta ao quarto. O ar ainda lhe parecia carregado, pesado, preenchido de algo. Ela agora estava deitada de bruços sobre a cama, lendo, balançando os pés verticalmente. Ele colocou os dois copos sobre o criado mudo, debruçou-se sobre o móvel mais uma vez, ergue-se e tomou um gole que lhe pareceu agressivo.
Deitou-se de lado no espaço que restava da cama, no vão das pernas dela, e repousou o rosto sobre suas nádegas. Ela fez qualquer comentário ao qual ele não ouviu, e respondeu com um grunhido. Sem mexer a cabeça, olhou pela janela e percebeu que dali podia ver a lua, que aparecia no único vão descoberto do céu carregado de nuvens. Era minguante, e lhe trouxe certa tranqüilidade saber que podia distinguir coisas assim, simples e antigas.
Pensou que, toda essa confusão que - inutilmente ou não – há muito tempo lhe perturbava a cabeça inúmeras vezes, se tornava mais odiosa através dos anos. Se no começo, digamos ao sair da infância, essa confusão talvez também o fizesse sentir-se diferente, especial de alguma forma, essa impressão foi se deteriorando com a idade, maturidade, ou simplesmente o passar do tempo. Ao longo da vida, ele foi descobrindo em outras pessoas, em livros, canções ou qualquer obra, e mesmo em gestos, elementos desta mesma confusão, e percebendo que talvez ele não fosse assim tão diferente porra nenhuma. E sim que este sentimento de deslocamento é parte deste padrão em que ele está incluído. Sim, era isso, e perceber isso também trazia o sentimento de ridículo, jogando-o de volta ao redemoinho caótico que em noites como essa ele se deixava consumir.
Tal constatação não lhe trazia nenhum conforto pela identificação, e sim, outra vez, repulsa. Porque percebia que era e fazia parte de algo que sempre tentava escapar, dizendo a si mesmo – Você é também um clichê, você é daqueles que se acham diferentes ou especiais, mas você não é, vocês não são, nós não somos. Para nosso azar e maldição, estamos sim encaixados em um padrão, em vários deles, aliás.

Ela disse qualquer outra coisa que ele não ouviu, mas ergueu-se pra que ela se movesse e mudasse de posição sobre a cama. Ela sentou-se novamente com as costas contra os travesseiros, e apontou um quadro no alto da parede. O quadro havia sido pintado por ele, há muitos anos, e ela fez um elogio. Ele, agora com a cabeça deitada entre os pés dela, olhou a pintura e sorriu levemente, aquele desenho parecia não ter mais nada de familiar.
Este clichê, esta categoria na qual se encontrava também poderia ter algo de bom, ele pensava. De certa forma, força a buscar sempre o novo, algo que você ainda não fez, ou algo que julga que não tenha sido feito. Mas esta constante busca por diferenciação, a eterna tentativa de fuga do óbvio também gerava naturalmente sua angústia. Termina por sempre gerar alguma cobrança, uma sensação de se estar desperdiçando algo de si mesmo, pois já que você identifica este mesmo gen que você leva dentro de si em pessoas que você considera brilhantes, que realizaram e tiveram o que você gostaria, você é novamente jogado ao maldito ciclo – sensação de injustiça,e pior: a identificação deste padrão em si mesmo e em outros conduz, nesta espiral diabólica, à esperança não admitida de que ainda terá sua chance, ainda vai brilhar, ainda vai ser salvo, ainda vai ter paz de espírito, porque outros já o tiveram.

Ele ouve um trovão distante, e levanta-se da cama. Pega seu maço de cigarros sobre o criado mudo, acende um e vai até a janela uma outra vez. O céu não parece mais tão púrpura, assumiu agora um tom mais acinzentado, e ele já começa a sentir o cheiro da chuva que virá. Ela vira-se de bruços outra vez, apoiando-se sobre os cotovelos para ler o livro sobre o travesseiro. Ele a observa, esforçando-se para sentir qualquer coisa agradável. Sua cara de compenetrada, a franja de cabelos negros que cai por sobre metade da testa dela, a pele alva dos ombros, a linha perfeita que desce das costas até a cintura, para novamente ascender na bunda pequena e arredondada, riscada pela fina calcinha rosa de algodão. Ele se esforça pra se convencer de algo. De que era de fato algo agradável.

Toda essa merda que ele trazia dentro de si fazia com que ele colocasse a maioria das pessoas com as quais tinha contato em duas categorias.

As que o admiravam, e a sua eterna auto sabotagem o fazia julgá-las inferiores a ele, e por isso as desprezava, e por isso as odiava.

As que ele admirava, e a sua eterna auto sabotagem o fazia julgar-se inferior a elas, e por isso as invejava, e por isso as odiava.

Ele sabia, desde que a tinha conhecido, que ela tinha sido incluída na primeira categoria,e esta qualificação era o que determinava o tratamento que ele dispensava a ela. E era esta sensação que ele tentava evitar desde o momento em que a luz lhe pareceu clara demais. Voltou-se para a janela, o céu agora estava ainda mais escuro, jogou o toco de cigarro com força para tentar acertar a calçada do lado oposto da rua, mas a chuva que começava a cair pesadamente só permitiu que caísse sobre a calçada logo abaixo do parapeito, rolando pela sarjeta com a enxurrada que começava.

Ela já havia deixado o livro de lado, continuava deitada de bruços, com a cabeça sobre os braços cruzados. Ele deitou por cima dela, beijando-lhe o ombro, o pescoço, afastou os cabelos da nuca dela e viu uma pequena tatuagem, um sol estilizado, logo abaixo da linha onde termina o cabelo, que nunca havia notado antes. Continuou beijando as costas e foi descendo, beijo, língua, saliva, brilho, visco, até a cintura, ela começava a suspirar. O barulho da chuva parecia mais forte, o ar dentro do quarto parecia mais denso, e ele agora beijava a bunda dela, com os dedos percorrendo embaixo do algodão rosa da pequena calcinha, pele, tecido, odor seiva, e ela começava a gemer baixinho. Ficou de joelhos na ponta da cama, e com um movimento único puxou a calcinha, jogando pra trás sem olhar. Apertou a cintura dela, uma mão em cada lado, notando a marca rosada que a pressão dos dedos fazia na pele clara. Ergueu-a até ela apoiar os joelhos na cama, ela abriu-se, lilás,veludo, e ele começou a penetrá-la com cada vez mais força, som abafado, grito contido, visão turva, não mais percebia a luz, fazia parte agora da densa névoa que preenchia o quarto,e a última coisa que pôde ouvir, antes de deixar-se dominar pela lisergia que o ato lhe causava, foi o barulho de uma colisão de carros lá fora na rua.