O sol fura o céu nublado, que chove a mesma chuva intermitente, já há dias a fio. O sol atravessa a janela e pousa nas mãos sobre o teclado, tamborilando, inconsciente gesto frio. Os dedos de Edgar param de repente.
Quer ir embora. Não pra casa, a louça repousando na pia, a nuvem de tédio parada nos cômodos, os modos contidos da vida em prédio, o inevitável incômodo confortável. Nem pra qualquer outro lugar, vertigem de gente, qualquer um é multidão. Nem mulher, nem bar, nenhuma alegria urgente, toda euforia é confusão. Quando tudo o que se quer é ir embora, não existe lugar nenhum.
Os olhos de Edgar se detêm no monitor, e o atravessam. A janela ao seu lado treme com o movimento do trânsito que se intensifica. Todo o pessoal do escritório já foi embora, Edgar fica. Abre a janela do Messenger, mas sabe que ninguém ali o interessa. Quando tudo o que se quer é ir embora, tudo é espera, tudo é pressa. Desliga o computador, apanha a mochila da cadeira, desliga o interruptor, a sala inteira escurece, esquece uma janela aberta, volta, fecha, caminha na escuridão pelo corredor. Tranca a sala, chama o elevador, e impaciente, espera. Se alegra, sem nenhum motivo aparente, porque é quinta feira.
A porta se abre no quinto andar, Edgar amaldiçoa em silêncio, odeia dividir elevador. Vertigem de gente, qualquer um é multidão. Entram uma gorda vestida de branco e um senhor, Edgar balbucia uma saudação, e se odeia porque não tem controle sobre seu tom de voz em situações assim. Retesado, olha pra baixo, olha para as mãos, se olha no o espelho da parede do fundo do elevador, desvia rápido o olhar porque não quer que pensem que ele se preocupa demais com a aparência, ele não é desses, e ele sabe que não é, mas também sabe que provavelmente se olharia no espelho durante toda a descida se estivesse sozinho naquele elevador. E por ficar pensando nisso tudo, os poucos segundos da descida lhe parecem intermináveis, mas finalmente o elevador para no térreo, e Edgar segura a porta para que os dois saiam e lhes diz boa noite, com um sorriso que, embora fabricado e usado várias vezes, sempre lhe será incômodo.
Desce até o subsolo e brinca com os manobristas, fala sobre futebol, afinal é pra isso que ele lê o caderno de esportes no jornal, pela internet, todas as manhãs. Sente algum enfado, mas se alegra por participar desse pequeno universo coletivo. Além do mais, sabe que é uma atitude sábia ganhar a simpatia dos manobristas, para que tratem seu carro com mais cuidado do que os dos clientes comuns.
O carro de Edgar se mistura a esta enchente metálica que transborda todos os dias, e nem percebe mais o caminho. Os carros não são gente. Os carros são máquinas com vida e comportamento próprios. Disputam o mesmo espaço que não existe, lataria de hostilidade sobre carcaça de pressa infundada. Submergem numa alcatéia que rosna, e a qualquer interrupção todos berram, urram, guincham, os uivos de nossos ancestrais deram lugar a isso, a bestialidade ficou mais confortável e cercada de insulfilm. A miséria lá fora não existe, amenizada com punhados de moedas entregues com expressões condescendentes, a miséria de dentro é maquiada com música ruim, e todo o ar se condiciona. As últimas gretas são preenchidas por motos, o mal produzido por outra máquina, a da urgência, conveniência, inventadas necessidades. Incomoda a Edgar que a primeira reação natural ao próximo seja hostil, mas nos dias em que ele não abraça tanto sua hipocrisia, ele sabe que é dele que parte a primeira hostilidade. Em seus dias bons, ele também sabe que nem toda hostilidade é recíproca.
Um maço de cigarros de menta repousa esquecido no porta-objetos da porta do motorista. Edgar os olha e por um segundo se pergunta como é que foram parar lá. Não é a marca que ele fuma, e ele nunca fumaria um cigarro de menta. Edgar sabe que, secretamente, ou mesmo sem perceber, a marca de cigarro que se fuma te coloca em uma categoria. Se é julgado por isso, e ele definitivamente nunca quis ser alguém que fuma cigarro com sabor. A chuva para novamente, e parado no trânsito, Edgar se lembra que aquele maço era dela. Uma mulher que só fumava quando saía com ele, ela dizia, e ela disse também que tinha experimentado aquele cigarro e gostado. Edgar não gosta de ter sido obrigado a lembrar disso desse jeito, de forma abrupta, e retoma o controle de sua linha de pensamento, para evitar fazer o cálculo de há quanto tempo aquele maço está ali. Olha para o porta-objetos em frente ao freio de mão, onde está o seu maço de cigarros, da marca escolhida por ele, à qual seu paladar e dedos estão acostumados, e que todos sabem que é o cigarro que ele fuma. Ele se lembra que ela não gostava daquela marca, e por isso, sempre que ele a pegava em casa para saírem, ela pedia para pararem em algum lugar pra comprar cigarros. Pensando nisso, ele pega seu maço e seu isqueiro bic pequeno na mão, mas hesita. Se irrita consigo mesmo por deixar uma bobagem daquelas interferir num gesto tão pequeno e maquinal, e os coloca de volta no compartimento. O tráfego volta a andar e Edgar pega um cigarro de menta, não para se lembrar, mas para exercitar a indiferença. Estranha o tamanho, mais fino e longo que o seu, mas o sabor não lhe desagrada, afinal. Abre uma fresta do vidro da janela e abaixa o volume do rádio, não gosta que outras pessoas saibam o que ele está ouvindo.
O portão automático da garagem do prédio se levanta, Edgar cumprimenta o porteiro erguendo a mão, e acelera seu carro por entre as colunas do estacionamento acima da velocidade permitida pelas normas do condomínio, de propósito. Edgar não quer que a idade o faça perder o prazer das transgressões mínimas, e evita pensar no ridículo disto tudo.
A porta do elevador se abre, e ao entrar, Edgar sente cheiro de perfume, resíduo de alguém que acabara de sair. O elevador passa pelo térreo sem parar, e Edgar se sente aliviado por não ter que dividir espaço com ninguém, vertigem.
Abre a porta de seu apartamento ouvindo o labrador da vizinha latir, mas não quer se irritar, porque a vizinha é cega. A mochila é jogada no sofá, e sobre a mesa da sala ficam a carteira, as chaves, o documento do carro, o celular e o maço de cigarros. Vai até o quarto, tira o tênis e a camisa, suspira. Abre a janela, e lá fora, o tempo lhe parece suspenso. Quando tudo o que se quer é ir embora, tudo é demora e paciência.
Vai até a cozinha, o chão está escorregadio de gordura e sente preguiça antecipada porque sabe que vai ter de limpar, abre a geladeira, constata que se quiser comer alguma coisa, vai ter que cozinhar, então pega uma lata de cerveja, pega um cigarro do maço sobre a mesa da sala e vai para a sacada. Olha os carros na avenida. Em uma das sacadas do prédio em frente há um senhor fumando, e Edgar percebe nele uma postura resignada, pensa que talvez sua esposa não o deixe fumar dentro de casa. Os olhares dos dois se encontram, e se demoram por uma fração de segundo até que o senhor o cumprimenta dobrando os lábios pra dentro num semi sorriso e com um movimento de cabeça, gesto que Edgar repete da mesma forma, e ambos desviam o olhar. Numa outra sacada, um gato gordo está deitado sobre o parapeito, e em outra se pode ver um casal assistindo TV no sofá.
Edgar volta pra sala, se senta no sofá, olha pra TV desligada e pondera. Se levanta apressado, vai até o quarto, calça os tênis, veste uma camisa limpa, apanha a carteira, as chaves, o documento do carro, o celular e o maço de cigarros na mesa da sala, apaga todas as luzes, menos a da sacada. Caminha na escuridão pelo corredor. Tranca a porta, chama o elevador, que demora. Dessa vez não ouve o labrador da vizinha cega. Quando tudo o que se quer é ir embora, sempre se sabe que nunca se chega.
sexta-feira, 17 de abril de 2009
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