“Se os peixes não vierem, pouco importa. Não busco os peixes que chegam alarmados à terra dos homens. Busco uma luz desmedida que me aquiete”
(Paulo Mendes Campos)
Não é silêncio o que se faz naquela sala de aula. Antes, uma redução do barulho habitual. Ainda assim, para aqueles alunos, isso é o máximo de solenidade que estão acostumados a conceder. O pequeno Edgar, sentado na antepenúltima carteira da penúltima fileira antes da parede da janela, está com os dois braços apoiados na mesa puída, cor verde-água desbotado. Observa as pichações feitas à caneta sobre o tampo, ele também contribui com algumas, ofensas gratuitas ao pessoal do turno da manhã, e suas respectivas respostas. Há um pequeno buraco no canto superior direito da mesa, onde se vê as camadas do compensado do qual o móvel é feito. O pequeno Edgar tem a cabeça baixa e olha a capa do seu fichário, sem pensar que usa um fichário não porque quer, mas porque, já há uns dois anos, todos os outros meninos começaram a usar, e como ele ainda não tem sua personalidade definida, tudo o que faz é tentar seguir os modelos que tem, os meninos mais fortes, os meninos que são melhores no futebol, os meninos que já fazem piadinhas maliciosas para as meninas e já tentam qualquer coisa. Olha para a capa do seu fichário, sem saber que o símbolo que ele olha chama-se ying yang. Sabe só que aquele símbolo é usado pela marca Town& Country, e as roupas dessa marca são usadas pelos seus primos mais velhos, e como ele ainda não tem seu próprio gosto definido, tudo o que faz é seguir seus primos mais velhos, embora rechaçado e hostilizado por eles.
O pequeno Edgar está inquieto, esperando os minutos restantes para a aula terminar, e fica olhando seu relógio Champion, modelo que escolheu porque um outro primo seu tinha um igual. Pediu um daquele para seus pais, presente de aniversário, achava que já era crescido o suficiente pra ter um relógio. Todos os seus primos mais velhos usavam, os chamavam de “cebolão”, eram os anos noventa. Sempre se lembrará do dia em que o ganhou. Dezenove de maio de 1992. Sábado. Acordou um pouco mais cedo do que de costume, ansiedade. Os sábados de manhã eram ótimos naqueles tempos. Quando ele acordava, o pai já tinha ido comprar pão e mortadela, trazia também o jornal. O pai fazia, todo sábado, suco de laranja no espremedor elétrico que tinha sido presente de casamento. O cheiro era bom na cozinha, e o sol entrava pela janela em frente a pia, a luz era bonita, e a mãe dormia até mais tarde aos sábados. Todo sábado de manhã era igual, e sempre era bom. O pai com cara de banho tomado, a mãe com cara de quem havia acabado de acordar, e o irmão ainda dormindo. Sempre se lembrará de ter entrado no ônibus sem saber onde se segurar, naqueles tempos ainda se entrava nos ônibus pela porta de trás. Entrara antes que o pai, o pai sempre o colocava na frente em situações assim. A carteira de couro puído se abrindo, os dedos grossos e avermelhados do pai dando o dinheiro para o cobrador (o pai havia lhe ensinado como guardar as notas na carteira, organizando-as de forma crescente de acordo com seu valor, e Edgar sempre se lembraria disso, embora só viesse a usar uma carteira anos mais tarde), o trajeto até o centro da cidade, que naqueles tempos, parecia enorme. O pequeno Edgar se espichava no banco para ver tudo pela janela daquele ônibus, linha T15 – Jardim do Estádio. O pai falava pra ele não encostar o rosto no vidro, era sujo. O pequeno Edgar não sabia por que era sujo aquele vidro, mas naqueles tempos sempre obedecia à voz grave do pai. Observava tudo pelo caminho, todos os tons de cinza das diferentes calçadas, todas as formas de folhas das árvores, todas as expressões das pessoas lá fora, todos os modelos de carro que cruzavam. Descer do ônibus era sempre o momento mais divertido, o desafio do pequeno Edgar era pular todos os três degraus de uma vez, passando pela linha da sarjeta, e pisando firmemente com os dois pés na calçada. Conseguiu fazê-lo perfeitamente naquele dia, e ao mesmo tempo em que ouvia o “Vai cair aí!” do pai, sentiu que já era velho demais para aquela brincadeira.
Sempre se lembrará que caminhava maravilhado, ainda que sem demonstrar, por entre a multidão que preenchia o calçadão da Oliveira Lima, naquele tempo ainda descoberto. Dezenas de pessoas indo e vindo, sacolas e caixas na mão, os pregões dos lojistas, os artesanatos sobre os panos estendidos no chão, e, claro, sempre havia o homem louco, com seu blazer azul marinho desbotado, que passava o dia cantando músicas do Roberto Carlos a plenos pulmões, ignorando os transeuntes. Era difícil e perigoso para uma criança caminhar ali, mas o pequeno Edgar não dava as mãos para o pai. Tinha vergonha de andar de mãos dadas naquela idade, ainda mais com um homem, e sabia que o pai também não se sentia confortável, embora nunca o tivesse dito, nem se negaria a fazê-lo se fosse necessário. A saída, encontrada anos antes, e já instituída como um código nunca dito entre eles, era que o pequeno Edgar segurava no prendedor da cintura da calça jeans do pai, o que naquela época era chamado de cós. Agarrava firmemente com o dedo indicador naquela pequena tira de pano grosso, e assim podia caminhar livremente, a alguns passos atrás, sendo guiado pelo pai. Podia observar tudo, despreocupado, pois tinha a segurança de que sua distração não o faria se perder.
Sempre se lembrará de que, como era costume do pai, entraram em todas as lojas possíveis, pesquisando os preços. Quando, já no começo da tarde, o pai enfim se decidira, voltaram à pequena loja da galeria, e o pequeno Edgar saiu dela já com o relógio no pulso, feliz e orgulhoso, mesmo o cebolão sendo grande demais para seu pequenino braço de dez anos de idade. Também se lembrará que, ao ganharem a rua novamente, o pequeno Edgar abraçou o pai desajeitadamente, sem interromperem o passo, apenas passando o braço pelas costas dele e dando leves tapinhas, distância aceitável para um abraço entre homens. O pai, também sem jeito, desfez um pouco o semblante cerrado, e respondeu com seu grunhido peculiar, que significava, ao mesmo tempo, “De nada” e “ Moleque folgado”: Heh.
Mas o pequeno Edgar não se lembra disso agora, enquanto mantém os olhos nos ponteiros e bate os pés no chão, esperando tocar o sinal da saída. Ouve já alguns barulhos na quadra ao fundo da escola, os sons surdos dos chutes na bola, os sons agudos das solas dos tênis sobre o concreto liso, e se pergunta quem será que já terá sido dispensado e já está lá. Olha em volta, e seus amigos têm a mesma expressão ansiosa que ele. Quando enfim ouvem o berro longo e estridente do sinal, levantam-se rapidamente, caminham por entre as fileiras, se despedem do professor com joviais e ainda educadas expressões, e se misturam à massa barulhenta que inunda o corredor e as escadas.
Quinze meninos chegam à quadra esburacada atrás do prédio da escola pública. E, como o manda o senso de justiça deles, os três melhores tiram dois ou um para ver quem começa a escolher os integrantes de seus times. O número de meninos permite formar três times, um time sempre ficando de próximo. O pequeno Edgar joga mal, é um dos piores, todos sabem disso, ele sabe disso, e sabe que por isso sempre é um dos últimos a ser escolhido. Resta a ele o conforto de saber que nunca é o último de todos, porque apesar dele ser ruim, um dos melhores jogadores da escola é também um de seus melhores amigos, e por isso acaba escolhendo o pequeno Edgar não por critério, mas por consideração.
O pequeno Edgar se esforça, corre o tempo todo, grita, tenta coordenar as jogadas, mas perde a bola, chuta torto, e de vez em quando a sorte lhe presenteia e ele acerta um cruzamento que resulta num gol, e de vez em quando algum dos colegas o presenteia e lhe dá um passe para que ele faça um gol, quando os zagueiros e o goleiro já estão vencidos.
Jogam por umas duas horas, revezando os times, até que escureça, e voltam pra casa sujos, suados e satisfeitos, com um orgulho qualquer que sentem mas não percebem a lhes estufarem os peitos.
Naqueles tempos, chegar em casa no fim da tarde era sempre bom. O cheiro da janta sendo feita era sentido já no portão, e ao atravessar o quintal, ia já ouvindo as vozes da mãe e da vó que conversavam na cozinha. E então era o banho, a janta e os desenhos na TV, a novela com a mãe esperando o pai chegar, o barulho do portão abrindo e a cachorra latindo quando o pai chegava em casa, os gibis no quarto até a hora de dormir. Todo fim de dia de semana era igual, e era sempre bom.
Naquele dia, era sexta feira, e o pequeno Edgar se demorava mais do que o costume em frente à TV, e sempre se lembrará de como o pai entrou pela sala, hesitou por alguns segundos e disse, como em algumas outras vezes: “Tá a fim de pescar amanhã?”. Naqueles tempos, ele sempre dizia que sim, mesmo sem saber porquê. “Quem mais vai?”, perguntou ao pai, porque sempre iam alguns amigos do bar junto. “Vou sozinho. Matar peixe”. “Tá.”, respondeu, e se sentiu um pouco mais alegre, porque nunca tinha ido pescar sozinho com o pai, sem a companhia de mais alguém. “Vai dormir. Amanhã saímos antes das cinco”, o pai finalizou, enquanto saía pra garagem para arrumar os apetrechos da pescaria.
Acordou antes que o chamassem, ao ouvir os primeiros ruídos na casa, ansiedade. Levantou-se da cama e, no escuro, pegou a muda de roupas que a mãe preparara na véspera, saiu do quarto tentando não fazer barulho pra não acordar o irmão que dormia na cama ao lado da sua. Encontrou o pai na cozinha enchendo o isopor de gelo e latas de cerveja, e a mãe sentada na cadeira com um dos cotovelos apoiados na mesa, a cabeça apoiada sobre a mão, dando palpites com voz de sono, despenteada e com uma expressão de enfado.
Sempre se lembrará da Brasília cor de vinho, cuja placa era UG 2018. Naqueles tempos, as placas dos carros ainda eram amarelas, e tinham somente duas letras antes dos números. Saíram com o dia ainda escuro, as varas entre eles, dividindo o espaço do painel até o vidro traseiro do carro, e os apetrechos no porta-malas fazendo barulho nas curvas.
O ritual era sempre o mesmo. O café na padaria, já no Riacho Grande, onde também compravam os lanches que serviriam de almoço. O café com leite e o pão na chapa enquanto viam o dia amanhecer. Tentar para o carro na sombra, e andar no mato molhado até encontrarem um lugar isolado. O pai deixava o pequeno Edgar carregar a caixa dos apetrechos, enquanto levava o isopor, a mochila e as varas. Quando enfim o pai achava um lugar satisfatório, colocava o isopor e a mochila mais afastados, à sombra de alguma árvore. Ainda distante da água, onde a grama terminava, desamarrava as tiras de borracha que prendiam as varas, preparava os chicotes e as chumbadas, colocava os anzóis, instalava os molinetes, com uma calma que exasperava o menino. Aprontava antes a vara do filho, sempre o colocava na frente em situações assim. Procurava algum toco grosso e curvo, e quando o encontrava, entrava na água até a altura das canelas, fincava o toco firmemente na areia grossa da margem, e nele pendurava o samburá, que ficava quase todo submerso, balançando ao sabor da correnteza. Fazia isso para que os peixes que pegasse pudessem ficar vivos durante toda a pescaria, pelo menos era o que o menino imaginava.
Preparava as duas latas de iscas, que podiam ser minhocas, vermes (cujo cheiro causava náusea ao pequeno Edgar) ou ração. Colocava uma lata no bolso, ou a prendia na cintura, ou podia até mesmo deixá-las na areia, desde que não ficasse exposta ao sol. Este mesmo processo variável era também aplicado ao seu pequeno radinho de pilha, que tocava (volume baixo para não espantar os peixes) coisas que o pequeno Edgar ainda não conhecia naqueles tempos. Cartola. Adoniran Barbosa. Altemar Dutra. Deep Purple. Rolling Stones. Raul Seixas. “O Samba pede passagem.”
Com tudo já pronto, o pequeno Edgar escolhia o lugar onde ficaria, quase sempre cerca de quinze metros distante do pai, para não atrapalhar, nem ser atrapalhado. O pai então abria a primeira lata de cerveja, e soltava um suspiro grosso e satisfeito após o primeiro gole. Lançava a linha à água, recolhia, e ficava quase imóvel, com uma expressão ao mesmo tempo concentrada e serena. O vento gelado matinal passava por seus cabelos negros e lisos, o ar tinha cheiro agridoce, característico, do qual Edgar nunca se esquecerá, cheiro de represa, relva úmida, o restante da branca névoa noturna ainda se demorando a dissipar. O pai agora era parte da paisagem, a compunha, junto com o sussurro constante da água corrente que se misturava aos diferentes cantos dos passarinhos seus cantos de amanhecer. E então seu rosto assumia uma feição de satisfação, tão sutil que somente a um filho era possível perceber.
O pequeno Edgar já sabia o que fazer, tinha aprendido anos antes. Observava todo o leito da represa. Haveria alguma faixa da água que seria mais escura, e que pareceria correr mais rápido. Ali era o canal. Onde os peixes maiores nadavam. Era ali que o anzol deveria ficar. Se esforçava para recordar todos os passos. Segurava a vara firmemente, a mão esquerda embaixo, a mão direita em cima, com seu pequeno dedo indicador prendendo a linha e mantendo levantada a fina trava do molinete. Com as mãos fixas dessa forma, erguia a vara por cima do ombro direito, o peso do chumbo pendendo por trás de suas costas, e o lançava, com força controlada, num semicírculo por cima de sua cabeça, afrouxando o dedo para que a linha corresse livre até que o chumbo caísse no lugar desejado, no meio do canal. Deixava afundar um pouco e descia a trava, interrompendo a queda. Girando a pequena manivela do lado direito do molinete, recolhia a linha até que ficasse suficientemente esticada para poder perceber qualquer movimento do anzol. Fixava o olhar na pequenina bóia branca com litras vermelhas sobre a superfície da água. Às vezes mantinha o olhar tão fixo que a visão se embaralhava, parecia que a água marrom parava de correr, e ele é que se movia. Quando isso acontecia, ficava tonto, piscava forte e sacudia a cabeça para voltar ao normal. Ficava tentando imaginar o anzol com a isca ali, naquele mundo escuro do fundo da represa, com os peixes passando em volta, intrigados com aquele pequeno alimento boiando gratuitamente em seu percurso, dádiva insuspeita.
O pai sempre pescava dois ou três peixes antes que ele, e o pequeno Edgar não percebia que isso talvez fosse a natureza tentando lhe ensinar qualquer coisa sobre a hierarquia da vida. O pai dava um tranco brusco, puxando a vara para si num solavanco e girando rapidamente a manivela do molinete, o barulho repentino que a água fazia tirava o menino de sua concentração, e ele observava, orgulhoso e atento, a forma como o pai manejava a linha para prender o peixe de vez, trazendo-o para a superfície. Divertia-se quando o pai, já certo que vencera o duelo, ria brejeiramente ou soltava um assovio alto imitando um bem-te-vi, e enfim soltava o peixe do anzol para medi-lo e colocá-lo no samburá. Então o pai relaxava os ombros, caminhava até onde a grama começava, para repor a isca e buscar outra cerveja, fazia qualquer comentário, ou cantava um trecho de alguma canção, olhava ao redor e voltava para a beira d’água. O pequeno Edgar então se sentia desafiado, esforçava-se para pescar algo, mudava estratégias, embora sua inquietude o fizesse mover demais a vara e a linha, e perdia a isca em poucos minutos, tendo que repô-la constantemente.
Quando enfim a sorte lhe presenteava com alguma fisgada certeira, o menino era tomado de êxtase, tentava dominar-se para fazer tudo da maneira correta, o pai gritava alguns poucos conselhos do lugar onde estava. Tirava o peixe da água (sempre eram menores que os do pai), e deixava-o pendurado ao anzol por alguns instantes, saboreando aquela alegria. Ficava tão imerso neste momento, que nunca pôde ver o olhar orgulhoso do pai, mirando o filho desajeitado, contente de seu próprio esforço e recompensa.
O pequeno Edgar tinha medo de soltar o peixe do anzol, embora o pai o tivesse ensinado anos antes. Colocá-lo na palma da mão, e, baixando os dedos, prender-lhe a barbatana para que não se sacudisse. Dessa forma, o peixe se manteria imóvel, para que se pudesse soltar o anzol de sua boca e colocá-lo no samburá. Conseguia fazê-lo amiúde, mas muitas vezes o menino aceitava sua incapacidade e recorria ao pai, que fazia esta parte do processo, não sem antes reclamar qualquer coisa.
O menino enfadava-se logo, e o pai, mesmo que dissesse qualquer frase em desaprovação, sabia que seria assim. O pequeno Edgar então saía a caminhar pela relva, observando alguns lixos sobre a margem, resíduos de pescadores anteriores. Olhava os peixes no samburá, brincava na beira da água, debaixo das broncas do pai que sempre dizia que com represa não se brinca, que há que se respeitar a represa, e mesmo que naqueles tempos ainda não entendesse o porquê, disso também Edgar sempre se lembrará.
Às vezes o pai demorava a pescar alguma coisa. Houve também os dias em que não pescavam quase nada, e inclusive houve dias em que nenhum peixe saiu da água. O pai nunca se importou com isso. “Peixe é detalhe”, ele dizia ao menino, que, naqueles tempos, não compreendia como isso poderia ser possível numa pescaria.
“Peixe é detalhe.” Edgar nunca se esqueceria desta frase, embora tenha levado duas décadas para ele entender seu real sentido. No princípio de sua vida adulta, aos vinte e poucos anos, quando sua personalidade enfim se definia, Edgar, que sempre lera muito, encontrou num livro uma frase que traduzia e catalisava este conceito: “Se os peixes não vierem, pouco importa. Não busco os peixes que chegam alarmados à terra dos homens. Busco uma luz desmedida que me aquiete”. Edgar, impressionado e identificando-se com aquilo, anotou a frase num pedaço de papel e o deixou na prateleira da estante da sala onde o pai guardava seus objetos pessoais. Também nunca se esquecerá de quando dias mais tarde o pai irrompeu em seu quarto tarde da noite, ligeiramente ébrio, e comentou a frase. “Uma luz desmedida que me aquiete”, repetia, talvez sem saber que essa busca, desesperadora e vã, também tinha sido incorporada pelo filho.
Mas naquele dia em especial, o pequeno Edgar não pescara nada. No começo da tarde, já havia abandonado a vara e quedava-se sentado à sombra de uma árvore, protegendo-se do sol a pino, divertindo-se com um gatinho vadio que aparecera por ali e observando o pai de longe, no mesmo lugar desde o princípio do dia, à margem da represa com água até as canelas, com o samburá já mais cheio.
Sem que o pequeno Edgar se desse conta, o pai enfim deu a pesca por terminada. Puxou toda a linha, agarrou o samburá e caminhou até onde estavam a mochila e a caixa dos apetrechos, perto do menino. Abriu o isopor, abriu outra lata de cerveja, e sentou-se na grama. Bebeu um gole, olhou pra água por alguns instantes, colocou a cerveja no chão. Abriu a mochila calmamente, tirou dela uma pequena pilha de jornal, separou uma folha, abriu-a e estendeu no chão fofo. Tirou uma tábua de cortar alimentos, de plástico branco, e a colocou sobre a folha estendida. O pequeno Edgar agora olhava atento e calado para o pai. Sem demonstrar nenhuma pressa, o pai retirou da mochila uma faca grande e de cabo prateado, embrulhada num papel grosso, um pequeno vidro contendo um líquido preto, e um outro vidro menor e mais arredondado, contendo finas fatias de gengibre em conserva, e um pequeno prato de plástico duro verde escuro. Dispôs tudo ao redor do jornal, puxou o samburá pra perto de si, hesitou por um segundo, e aumentou um pouco o volume de seu radinho de pilha. “Isso é Pink Floyd”, disse para o filho, embora sem olhar pra ele. O pequeno Edgar, agora já completamente tomado, sentava-se perto do pai e o observava em silêncio. O pai tirou um peixe do samburá, que ainda se debatia, colocou-o sobre a tábua, segurando-o firme, e com a outra mão segurando a faca, decepou-lhe a cabeça praticamente num só movimento, fazendo-o a cair um pouco longe, sobre a grama. O pequeno Edgar emitiu um gemido surdo, enquanto o pai, com cortes precisos, cortava o peixe pela barriga, longitudinalmente, e retirou-lhe as vísceras com a ponta da faca. Cortou-lhe enfim a cauda, e depois, manejando a faca habilmente com o polegar e o indicador, retirou-lhe a pele e finalizou o corte fazendo dois filés, que depositou sobre o prato. Fez isso com todos os peixes, que eram uns cinco ou seis. Juntou todas as vísceras, cabeças, caudas e peles que sobraram, e deixou ao pé da árvore, para que o pequeno gato, que olhava atento para tudo, se fartasse. O pequeno Edgar estranhou que um gato pudesse gostar daquilo, mas o pai o tranqüilizou dizendo que para o animal, aquilo era um banquete. Sentado novamente, o pai cortou todos os filés em pequenos pedaços. Abriu o pequeno pote de vidro e jogou algumas fatias de gengibre. Terminou jogando por sobre tudo aquele líquido preto, que o pequeno Edgar perguntou o que era. “Shoyu”, disse o pai, enquanto abria a mochila novamente para pegar dois garfos. Deu um deles ao menino, que assombrado, perguntou: “A gente vai comer peixe cru?”. O pai riu, espetou um pedaço de peixe e uma fatia de gengibre com o garfo, esfregou no molho no fundo do prato, e de boca cheia, riu dizendo: “Você não sabe nada.”
Edgar sempre se lembrará disso. Mesmo quando, dezessete anos mais tarde, estiver sentado numa mesa de um restaurante japonês, junto com seus colegas de trabalho, no horário de almoço de uma terça-feira. E quando o garçom chegar trazendo uma bandeja cheia de muitas variedades de sushi e pequenos filés de vários tipos de peixe. E quando um dos colegas apontar para uma das pequenas filas de filés de peixe cru e perguntar que tipo de peixe será aquele, Edgar, inadvertidamente, terá seu olhar perdido, lembrando-se daquele dia. E quando um dos seus colegas, ao notar um sorriso sutil e meio bobo no rosto de Edgar, lhe perguntará:
- O que foi?
Edgar voltará seu olhar para ele por um segundo, para logo depois deixar-se perder novamente, voltando a sorrir enquanto responde:
- Nada.
sábado, 25 de abril de 2009
De tudo que nunca é dito
Aí eu não sei o que pensar, nem se quero pensar. Mas na real, não tem como não pensar, sabe? Porque se surge a dúvida se quero ou devo pensar ou não, é porque rolou algum impacto. Sabe? Mesmo que finja ou me force que não, pra chegar nesse ponto é porque rolou o impacto sim. Você não concorda?
Bom, então vamos brincar assim. Vamos brincar que eu te digo as coisas que nunca diria se não estivéssemos bêbados assim, melhor ainda, que eu digo as coisas que eu não diria nem se estivesse assim. Vou me arrepender, certeza. Talvez até apagar antes. Mas...tá, sim. Mais uma cerveja?
Não sei como foi, nem se foi. Mas foi assim. A gente se viu, e eu não vi nada demais. Ou vi e não quis ver, sei lá. Alguém lá sabe? Sei que eu fui embora, e nem pensei, e acho que nem você. Mas depois, pensei em você. Mas depois era depois, você era nunca, e eu, como sempre, era quase.
Aí depois a gente se falou, não sei por quê. E eu gostei, nem sei do quê. Aí eu vi umas coisas de você, mas nem fiz caso, vi coisas que você fez, e, por acaso, te admirei. E vi mais coisas, e te mirei mais. Um dia você me chamou, e eu gostei porque te procurava sem admitir. Eu queria estar perto de você, mas sem mentir. Queria fazer parte de alguma coisa sua, mas sem invadir, eu queria que você quisesse. Mas depois desisti, porque eu sou sempre assim. Eu paro no quase, nada assim tão ruim, e você, como tudo o que pudesse ser bom, por isso mesmo, já era nunca, já era fim.
Aí você me chamou de novo, e eu gostei mais, porque já quase admitia, mas não acreditava, nem queria. Eu, que ria, queimava, ardia, amava já uma projeção que esbarrava num muro que eu mesmo construía.
Mas talvez fosse você que se ria. Mais de uma vez (e mesmo agora) eu pensei em como seria. Se fosse, ou se...se fosse você. Se a gente se visse mais, se desse certo. Se a gente saísse, e, de perto, fosse assim natural, o olhar, o toque, a química, alguma mímica que a gente inventasse, devagar, um choque não sei em que lugar, alguma rítmica, cadência que a gente encontrasse, e que soubesse ser só da gente, e que urgente viesse uma paciência que nos fizesse aceitar o tempo que fosse durar.
Aí eu quis você, fiz uma você do meu lado. A gente já íntimo, eu já calado, você deitada na minha cama num domingo, a gente rindo de um filme qualquer na TV. E eu te via já quase todo dia. Eu já gostava da tua mão, eu não pensava mais em nada, você já era acostumada comigo. Não havia mais perigo, você sabia dos meus vícios, todos os nossos sacrifícios já eram passado, era paz o que havíamos encontrado. Eu gostava do seu cheiro, você conhecia meu corpo inteiro, eu sabia de cór suas tatuagens, minhas manias eram quase bobagem, as suas eu nem ligava, eram uma bagagem que você trazia e eu acolhia, aceitava. Na hora da cama, eu não tinha mais medo, nada era segredo, tudo pintava direito e a gente aproveitava.
Eu gostava do seu rosto, do seu gosto de manhã, você se aninhava no meu colo, no meu peito, a gente logo encontrava um jeito, um gesto, uma calma.
E é isso. E era assim. E então isso fica assim. Isso fica entre nós, e morre aqui. E amanhã, quando a gente acordar de ressaca, não vamos lembrar de nada com clareza. Saca? A gente nunca vai ter certeza. Nunca vai saber o que de fato aconteceu. Você vai até achar que quem falou isso tudo foi você, e não eu. Não é uma beleza? A gente nem vai se arrepender. Mas...tá. Mais uma cerveja?
Bom, então vamos brincar assim. Vamos brincar que eu te digo as coisas que nunca diria se não estivéssemos bêbados assim, melhor ainda, que eu digo as coisas que eu não diria nem se estivesse assim. Vou me arrepender, certeza. Talvez até apagar antes. Mas...tá, sim. Mais uma cerveja?
Não sei como foi, nem se foi. Mas foi assim. A gente se viu, e eu não vi nada demais. Ou vi e não quis ver, sei lá. Alguém lá sabe? Sei que eu fui embora, e nem pensei, e acho que nem você. Mas depois, pensei em você. Mas depois era depois, você era nunca, e eu, como sempre, era quase.
Aí depois a gente se falou, não sei por quê. E eu gostei, nem sei do quê. Aí eu vi umas coisas de você, mas nem fiz caso, vi coisas que você fez, e, por acaso, te admirei. E vi mais coisas, e te mirei mais. Um dia você me chamou, e eu gostei porque te procurava sem admitir. Eu queria estar perto de você, mas sem mentir. Queria fazer parte de alguma coisa sua, mas sem invadir, eu queria que você quisesse. Mas depois desisti, porque eu sou sempre assim. Eu paro no quase, nada assim tão ruim, e você, como tudo o que pudesse ser bom, por isso mesmo, já era nunca, já era fim.
Aí você me chamou de novo, e eu gostei mais, porque já quase admitia, mas não acreditava, nem queria. Eu, que ria, queimava, ardia, amava já uma projeção que esbarrava num muro que eu mesmo construía.
Mas talvez fosse você que se ria. Mais de uma vez (e mesmo agora) eu pensei em como seria. Se fosse, ou se...se fosse você. Se a gente se visse mais, se desse certo. Se a gente saísse, e, de perto, fosse assim natural, o olhar, o toque, a química, alguma mímica que a gente inventasse, devagar, um choque não sei em que lugar, alguma rítmica, cadência que a gente encontrasse, e que soubesse ser só da gente, e que urgente viesse uma paciência que nos fizesse aceitar o tempo que fosse durar.
Aí eu quis você, fiz uma você do meu lado. A gente já íntimo, eu já calado, você deitada na minha cama num domingo, a gente rindo de um filme qualquer na TV. E eu te via já quase todo dia. Eu já gostava da tua mão, eu não pensava mais em nada, você já era acostumada comigo. Não havia mais perigo, você sabia dos meus vícios, todos os nossos sacrifícios já eram passado, era paz o que havíamos encontrado. Eu gostava do seu cheiro, você conhecia meu corpo inteiro, eu sabia de cór suas tatuagens, minhas manias eram quase bobagem, as suas eu nem ligava, eram uma bagagem que você trazia e eu acolhia, aceitava. Na hora da cama, eu não tinha mais medo, nada era segredo, tudo pintava direito e a gente aproveitava.
Eu gostava do seu rosto, do seu gosto de manhã, você se aninhava no meu colo, no meu peito, a gente logo encontrava um jeito, um gesto, uma calma.
E é isso. E era assim. E então isso fica assim. Isso fica entre nós, e morre aqui. E amanhã, quando a gente acordar de ressaca, não vamos lembrar de nada com clareza. Saca? A gente nunca vai ter certeza. Nunca vai saber o que de fato aconteceu. Você vai até achar que quem falou isso tudo foi você, e não eu. Não é uma beleza? A gente nem vai se arrepender. Mas...tá. Mais uma cerveja?
sexta-feira, 17 de abril de 2009
Da Inércia
O sol fura o céu nublado, que chove a mesma chuva intermitente, já há dias a fio. O sol atravessa a janela e pousa nas mãos sobre o teclado, tamborilando, inconsciente gesto frio. Os dedos de Edgar param de repente.
Quer ir embora. Não pra casa, a louça repousando na pia, a nuvem de tédio parada nos cômodos, os modos contidos da vida em prédio, o inevitável incômodo confortável. Nem pra qualquer outro lugar, vertigem de gente, qualquer um é multidão. Nem mulher, nem bar, nenhuma alegria urgente, toda euforia é confusão. Quando tudo o que se quer é ir embora, não existe lugar nenhum.
Os olhos de Edgar se detêm no monitor, e o atravessam. A janela ao seu lado treme com o movimento do trânsito que se intensifica. Todo o pessoal do escritório já foi embora, Edgar fica. Abre a janela do Messenger, mas sabe que ninguém ali o interessa. Quando tudo o que se quer é ir embora, tudo é espera, tudo é pressa. Desliga o computador, apanha a mochila da cadeira, desliga o interruptor, a sala inteira escurece, esquece uma janela aberta, volta, fecha, caminha na escuridão pelo corredor. Tranca a sala, chama o elevador, e impaciente, espera. Se alegra, sem nenhum motivo aparente, porque é quinta feira.
A porta se abre no quinto andar, Edgar amaldiçoa em silêncio, odeia dividir elevador. Vertigem de gente, qualquer um é multidão. Entram uma gorda vestida de branco e um senhor, Edgar balbucia uma saudação, e se odeia porque não tem controle sobre seu tom de voz em situações assim. Retesado, olha pra baixo, olha para as mãos, se olha no o espelho da parede do fundo do elevador, desvia rápido o olhar porque não quer que pensem que ele se preocupa demais com a aparência, ele não é desses, e ele sabe que não é, mas também sabe que provavelmente se olharia no espelho durante toda a descida se estivesse sozinho naquele elevador. E por ficar pensando nisso tudo, os poucos segundos da descida lhe parecem intermináveis, mas finalmente o elevador para no térreo, e Edgar segura a porta para que os dois saiam e lhes diz boa noite, com um sorriso que, embora fabricado e usado várias vezes, sempre lhe será incômodo.
Desce até o subsolo e brinca com os manobristas, fala sobre futebol, afinal é pra isso que ele lê o caderno de esportes no jornal, pela internet, todas as manhãs. Sente algum enfado, mas se alegra por participar desse pequeno universo coletivo. Além do mais, sabe que é uma atitude sábia ganhar a simpatia dos manobristas, para que tratem seu carro com mais cuidado do que os dos clientes comuns.
O carro de Edgar se mistura a esta enchente metálica que transborda todos os dias, e nem percebe mais o caminho. Os carros não são gente. Os carros são máquinas com vida e comportamento próprios. Disputam o mesmo espaço que não existe, lataria de hostilidade sobre carcaça de pressa infundada. Submergem numa alcatéia que rosna, e a qualquer interrupção todos berram, urram, guincham, os uivos de nossos ancestrais deram lugar a isso, a bestialidade ficou mais confortável e cercada de insulfilm. A miséria lá fora não existe, amenizada com punhados de moedas entregues com expressões condescendentes, a miséria de dentro é maquiada com música ruim, e todo o ar se condiciona. As últimas gretas são preenchidas por motos, o mal produzido por outra máquina, a da urgência, conveniência, inventadas necessidades. Incomoda a Edgar que a primeira reação natural ao próximo seja hostil, mas nos dias em que ele não abraça tanto sua hipocrisia, ele sabe que é dele que parte a primeira hostilidade. Em seus dias bons, ele também sabe que nem toda hostilidade é recíproca.
Um maço de cigarros de menta repousa esquecido no porta-objetos da porta do motorista. Edgar os olha e por um segundo se pergunta como é que foram parar lá. Não é a marca que ele fuma, e ele nunca fumaria um cigarro de menta. Edgar sabe que, secretamente, ou mesmo sem perceber, a marca de cigarro que se fuma te coloca em uma categoria. Se é julgado por isso, e ele definitivamente nunca quis ser alguém que fuma cigarro com sabor. A chuva para novamente, e parado no trânsito, Edgar se lembra que aquele maço era dela. Uma mulher que só fumava quando saía com ele, ela dizia, e ela disse também que tinha experimentado aquele cigarro e gostado. Edgar não gosta de ter sido obrigado a lembrar disso desse jeito, de forma abrupta, e retoma o controle de sua linha de pensamento, para evitar fazer o cálculo de há quanto tempo aquele maço está ali. Olha para o porta-objetos em frente ao freio de mão, onde está o seu maço de cigarros, da marca escolhida por ele, à qual seu paladar e dedos estão acostumados, e que todos sabem que é o cigarro que ele fuma. Ele se lembra que ela não gostava daquela marca, e por isso, sempre que ele a pegava em casa para saírem, ela pedia para pararem em algum lugar pra comprar cigarros. Pensando nisso, ele pega seu maço e seu isqueiro bic pequeno na mão, mas hesita. Se irrita consigo mesmo por deixar uma bobagem daquelas interferir num gesto tão pequeno e maquinal, e os coloca de volta no compartimento. O tráfego volta a andar e Edgar pega um cigarro de menta, não para se lembrar, mas para exercitar a indiferença. Estranha o tamanho, mais fino e longo que o seu, mas o sabor não lhe desagrada, afinal. Abre uma fresta do vidro da janela e abaixa o volume do rádio, não gosta que outras pessoas saibam o que ele está ouvindo.
O portão automático da garagem do prédio se levanta, Edgar cumprimenta o porteiro erguendo a mão, e acelera seu carro por entre as colunas do estacionamento acima da velocidade permitida pelas normas do condomínio, de propósito. Edgar não quer que a idade o faça perder o prazer das transgressões mínimas, e evita pensar no ridículo disto tudo.
A porta do elevador se abre, e ao entrar, Edgar sente cheiro de perfume, resíduo de alguém que acabara de sair. O elevador passa pelo térreo sem parar, e Edgar se sente aliviado por não ter que dividir espaço com ninguém, vertigem.
Abre a porta de seu apartamento ouvindo o labrador da vizinha latir, mas não quer se irritar, porque a vizinha é cega. A mochila é jogada no sofá, e sobre a mesa da sala ficam a carteira, as chaves, o documento do carro, o celular e o maço de cigarros. Vai até o quarto, tira o tênis e a camisa, suspira. Abre a janela, e lá fora, o tempo lhe parece suspenso. Quando tudo o que se quer é ir embora, tudo é demora e paciência.
Vai até a cozinha, o chão está escorregadio de gordura e sente preguiça antecipada porque sabe que vai ter de limpar, abre a geladeira, constata que se quiser comer alguma coisa, vai ter que cozinhar, então pega uma lata de cerveja, pega um cigarro do maço sobre a mesa da sala e vai para a sacada. Olha os carros na avenida. Em uma das sacadas do prédio em frente há um senhor fumando, e Edgar percebe nele uma postura resignada, pensa que talvez sua esposa não o deixe fumar dentro de casa. Os olhares dos dois se encontram, e se demoram por uma fração de segundo até que o senhor o cumprimenta dobrando os lábios pra dentro num semi sorriso e com um movimento de cabeça, gesto que Edgar repete da mesma forma, e ambos desviam o olhar. Numa outra sacada, um gato gordo está deitado sobre o parapeito, e em outra se pode ver um casal assistindo TV no sofá.
Edgar volta pra sala, se senta no sofá, olha pra TV desligada e pondera. Se levanta apressado, vai até o quarto, calça os tênis, veste uma camisa limpa, apanha a carteira, as chaves, o documento do carro, o celular e o maço de cigarros na mesa da sala, apaga todas as luzes, menos a da sacada. Caminha na escuridão pelo corredor. Tranca a porta, chama o elevador, que demora. Dessa vez não ouve o labrador da vizinha cega. Quando tudo o que se quer é ir embora, sempre se sabe que nunca se chega.
Quer ir embora. Não pra casa, a louça repousando na pia, a nuvem de tédio parada nos cômodos, os modos contidos da vida em prédio, o inevitável incômodo confortável. Nem pra qualquer outro lugar, vertigem de gente, qualquer um é multidão. Nem mulher, nem bar, nenhuma alegria urgente, toda euforia é confusão. Quando tudo o que se quer é ir embora, não existe lugar nenhum.
Os olhos de Edgar se detêm no monitor, e o atravessam. A janela ao seu lado treme com o movimento do trânsito que se intensifica. Todo o pessoal do escritório já foi embora, Edgar fica. Abre a janela do Messenger, mas sabe que ninguém ali o interessa. Quando tudo o que se quer é ir embora, tudo é espera, tudo é pressa. Desliga o computador, apanha a mochila da cadeira, desliga o interruptor, a sala inteira escurece, esquece uma janela aberta, volta, fecha, caminha na escuridão pelo corredor. Tranca a sala, chama o elevador, e impaciente, espera. Se alegra, sem nenhum motivo aparente, porque é quinta feira.
A porta se abre no quinto andar, Edgar amaldiçoa em silêncio, odeia dividir elevador. Vertigem de gente, qualquer um é multidão. Entram uma gorda vestida de branco e um senhor, Edgar balbucia uma saudação, e se odeia porque não tem controle sobre seu tom de voz em situações assim. Retesado, olha pra baixo, olha para as mãos, se olha no o espelho da parede do fundo do elevador, desvia rápido o olhar porque não quer que pensem que ele se preocupa demais com a aparência, ele não é desses, e ele sabe que não é, mas também sabe que provavelmente se olharia no espelho durante toda a descida se estivesse sozinho naquele elevador. E por ficar pensando nisso tudo, os poucos segundos da descida lhe parecem intermináveis, mas finalmente o elevador para no térreo, e Edgar segura a porta para que os dois saiam e lhes diz boa noite, com um sorriso que, embora fabricado e usado várias vezes, sempre lhe será incômodo.
Desce até o subsolo e brinca com os manobristas, fala sobre futebol, afinal é pra isso que ele lê o caderno de esportes no jornal, pela internet, todas as manhãs. Sente algum enfado, mas se alegra por participar desse pequeno universo coletivo. Além do mais, sabe que é uma atitude sábia ganhar a simpatia dos manobristas, para que tratem seu carro com mais cuidado do que os dos clientes comuns.
O carro de Edgar se mistura a esta enchente metálica que transborda todos os dias, e nem percebe mais o caminho. Os carros não são gente. Os carros são máquinas com vida e comportamento próprios. Disputam o mesmo espaço que não existe, lataria de hostilidade sobre carcaça de pressa infundada. Submergem numa alcatéia que rosna, e a qualquer interrupção todos berram, urram, guincham, os uivos de nossos ancestrais deram lugar a isso, a bestialidade ficou mais confortável e cercada de insulfilm. A miséria lá fora não existe, amenizada com punhados de moedas entregues com expressões condescendentes, a miséria de dentro é maquiada com música ruim, e todo o ar se condiciona. As últimas gretas são preenchidas por motos, o mal produzido por outra máquina, a da urgência, conveniência, inventadas necessidades. Incomoda a Edgar que a primeira reação natural ao próximo seja hostil, mas nos dias em que ele não abraça tanto sua hipocrisia, ele sabe que é dele que parte a primeira hostilidade. Em seus dias bons, ele também sabe que nem toda hostilidade é recíproca.
Um maço de cigarros de menta repousa esquecido no porta-objetos da porta do motorista. Edgar os olha e por um segundo se pergunta como é que foram parar lá. Não é a marca que ele fuma, e ele nunca fumaria um cigarro de menta. Edgar sabe que, secretamente, ou mesmo sem perceber, a marca de cigarro que se fuma te coloca em uma categoria. Se é julgado por isso, e ele definitivamente nunca quis ser alguém que fuma cigarro com sabor. A chuva para novamente, e parado no trânsito, Edgar se lembra que aquele maço era dela. Uma mulher que só fumava quando saía com ele, ela dizia, e ela disse também que tinha experimentado aquele cigarro e gostado. Edgar não gosta de ter sido obrigado a lembrar disso desse jeito, de forma abrupta, e retoma o controle de sua linha de pensamento, para evitar fazer o cálculo de há quanto tempo aquele maço está ali. Olha para o porta-objetos em frente ao freio de mão, onde está o seu maço de cigarros, da marca escolhida por ele, à qual seu paladar e dedos estão acostumados, e que todos sabem que é o cigarro que ele fuma. Ele se lembra que ela não gostava daquela marca, e por isso, sempre que ele a pegava em casa para saírem, ela pedia para pararem em algum lugar pra comprar cigarros. Pensando nisso, ele pega seu maço e seu isqueiro bic pequeno na mão, mas hesita. Se irrita consigo mesmo por deixar uma bobagem daquelas interferir num gesto tão pequeno e maquinal, e os coloca de volta no compartimento. O tráfego volta a andar e Edgar pega um cigarro de menta, não para se lembrar, mas para exercitar a indiferença. Estranha o tamanho, mais fino e longo que o seu, mas o sabor não lhe desagrada, afinal. Abre uma fresta do vidro da janela e abaixa o volume do rádio, não gosta que outras pessoas saibam o que ele está ouvindo.
O portão automático da garagem do prédio se levanta, Edgar cumprimenta o porteiro erguendo a mão, e acelera seu carro por entre as colunas do estacionamento acima da velocidade permitida pelas normas do condomínio, de propósito. Edgar não quer que a idade o faça perder o prazer das transgressões mínimas, e evita pensar no ridículo disto tudo.
A porta do elevador se abre, e ao entrar, Edgar sente cheiro de perfume, resíduo de alguém que acabara de sair. O elevador passa pelo térreo sem parar, e Edgar se sente aliviado por não ter que dividir espaço com ninguém, vertigem.
Abre a porta de seu apartamento ouvindo o labrador da vizinha latir, mas não quer se irritar, porque a vizinha é cega. A mochila é jogada no sofá, e sobre a mesa da sala ficam a carteira, as chaves, o documento do carro, o celular e o maço de cigarros. Vai até o quarto, tira o tênis e a camisa, suspira. Abre a janela, e lá fora, o tempo lhe parece suspenso. Quando tudo o que se quer é ir embora, tudo é demora e paciência.
Vai até a cozinha, o chão está escorregadio de gordura e sente preguiça antecipada porque sabe que vai ter de limpar, abre a geladeira, constata que se quiser comer alguma coisa, vai ter que cozinhar, então pega uma lata de cerveja, pega um cigarro do maço sobre a mesa da sala e vai para a sacada. Olha os carros na avenida. Em uma das sacadas do prédio em frente há um senhor fumando, e Edgar percebe nele uma postura resignada, pensa que talvez sua esposa não o deixe fumar dentro de casa. Os olhares dos dois se encontram, e se demoram por uma fração de segundo até que o senhor o cumprimenta dobrando os lábios pra dentro num semi sorriso e com um movimento de cabeça, gesto que Edgar repete da mesma forma, e ambos desviam o olhar. Numa outra sacada, um gato gordo está deitado sobre o parapeito, e em outra se pode ver um casal assistindo TV no sofá.
Edgar volta pra sala, se senta no sofá, olha pra TV desligada e pondera. Se levanta apressado, vai até o quarto, calça os tênis, veste uma camisa limpa, apanha a carteira, as chaves, o documento do carro, o celular e o maço de cigarros na mesa da sala, apaga todas as luzes, menos a da sacada. Caminha na escuridão pelo corredor. Tranca a porta, chama o elevador, que demora. Dessa vez não ouve o labrador da vizinha cega. Quando tudo o que se quer é ir embora, sempre se sabe que nunca se chega.
Assinar:
Postagens (Atom)