Aí eu não sei o que pensar, nem se quero pensar. Mas na real, não tem como não pensar, sabe? Porque se surge a dúvida se quero ou devo pensar ou não, é porque rolou algum impacto. Sabe? Mesmo que finja ou me force que não, pra chegar nesse ponto é porque rolou o impacto sim. Você não concorda?
Bom, então vamos brincar assim. Vamos brincar que eu te digo as coisas que nunca diria se não estivéssemos bêbados assim, melhor ainda, que eu digo as coisas que eu não diria nem se estivesse assim. Vou me arrepender, certeza. Talvez até apagar antes. Mas...tá, sim. Mais uma cerveja?
Não sei como foi, nem se foi. Mas foi assim. A gente se viu, e eu não vi nada demais. Ou vi e não quis ver, sei lá. Alguém lá sabe? Sei que eu fui embora, e nem pensei, e acho que nem você. Mas depois, pensei em você. Mas depois era depois, você era nunca, e eu, como sempre, era quase.
Aí depois a gente se falou, não sei por quê. E eu gostei, nem sei do quê. Aí eu vi umas coisas de você, mas nem fiz caso, vi coisas que você fez, e, por acaso, te admirei. E vi mais coisas, e te mirei mais. Um dia você me chamou, e eu gostei porque te procurava sem admitir. Eu queria estar perto de você, mas sem mentir. Queria fazer parte de alguma coisa sua, mas sem invadir, eu queria que você quisesse. Mas depois desisti, porque eu sou sempre assim. Eu paro no quase, nada assim tão ruim, e você, como tudo o que pudesse ser bom, por isso mesmo, já era nunca, já era fim.
Aí você me chamou de novo, e eu gostei mais, porque já quase admitia, mas não acreditava, nem queria. Eu, que ria, queimava, ardia, amava já uma projeção que esbarrava num muro que eu mesmo construía.
Mas talvez fosse você que se ria. Mais de uma vez (e mesmo agora) eu pensei em como seria. Se fosse, ou se...se fosse você. Se a gente se visse mais, se desse certo. Se a gente saísse, e, de perto, fosse assim natural, o olhar, o toque, a química, alguma mímica que a gente inventasse, devagar, um choque não sei em que lugar, alguma rítmica, cadência que a gente encontrasse, e que soubesse ser só da gente, e que urgente viesse uma paciência que nos fizesse aceitar o tempo que fosse durar.
Aí eu quis você, fiz uma você do meu lado. A gente já íntimo, eu já calado, você deitada na minha cama num domingo, a gente rindo de um filme qualquer na TV. E eu te via já quase todo dia. Eu já gostava da tua mão, eu não pensava mais em nada, você já era acostumada comigo. Não havia mais perigo, você sabia dos meus vícios, todos os nossos sacrifícios já eram passado, era paz o que havíamos encontrado. Eu gostava do seu cheiro, você conhecia meu corpo inteiro, eu sabia de cór suas tatuagens, minhas manias eram quase bobagem, as suas eu nem ligava, eram uma bagagem que você trazia e eu acolhia, aceitava. Na hora da cama, eu não tinha mais medo, nada era segredo, tudo pintava direito e a gente aproveitava.
Eu gostava do seu rosto, do seu gosto de manhã, você se aninhava no meu colo, no meu peito, a gente logo encontrava um jeito, um gesto, uma calma.
E é isso. E era assim. E então isso fica assim. Isso fica entre nós, e morre aqui. E amanhã, quando a gente acordar de ressaca, não vamos lembrar de nada com clareza. Saca? A gente nunca vai ter certeza. Nunca vai saber o que de fato aconteceu. Você vai até achar que quem falou isso tudo foi você, e não eu. Não é uma beleza? A gente nem vai se arrepender. Mas...tá. Mais uma cerveja?
sábado, 25 de abril de 2009
sexta-feira, 17 de abril de 2009
Da Inércia
O sol fura o céu nublado, que chove a mesma chuva intermitente, já há dias a fio. O sol atravessa a janela e pousa nas mãos sobre o teclado, tamborilando, inconsciente gesto frio. Os dedos de Edgar param de repente.
Quer ir embora. Não pra casa, a louça repousando na pia, a nuvem de tédio parada nos cômodos, os modos contidos da vida em prédio, o inevitável incômodo confortável. Nem pra qualquer outro lugar, vertigem de gente, qualquer um é multidão. Nem mulher, nem bar, nenhuma alegria urgente, toda euforia é confusão. Quando tudo o que se quer é ir embora, não existe lugar nenhum.
Os olhos de Edgar se detêm no monitor, e o atravessam. A janela ao seu lado treme com o movimento do trânsito que se intensifica. Todo o pessoal do escritório já foi embora, Edgar fica. Abre a janela do Messenger, mas sabe que ninguém ali o interessa. Quando tudo o que se quer é ir embora, tudo é espera, tudo é pressa. Desliga o computador, apanha a mochila da cadeira, desliga o interruptor, a sala inteira escurece, esquece uma janela aberta, volta, fecha, caminha na escuridão pelo corredor. Tranca a sala, chama o elevador, e impaciente, espera. Se alegra, sem nenhum motivo aparente, porque é quinta feira.
A porta se abre no quinto andar, Edgar amaldiçoa em silêncio, odeia dividir elevador. Vertigem de gente, qualquer um é multidão. Entram uma gorda vestida de branco e um senhor, Edgar balbucia uma saudação, e se odeia porque não tem controle sobre seu tom de voz em situações assim. Retesado, olha pra baixo, olha para as mãos, se olha no o espelho da parede do fundo do elevador, desvia rápido o olhar porque não quer que pensem que ele se preocupa demais com a aparência, ele não é desses, e ele sabe que não é, mas também sabe que provavelmente se olharia no espelho durante toda a descida se estivesse sozinho naquele elevador. E por ficar pensando nisso tudo, os poucos segundos da descida lhe parecem intermináveis, mas finalmente o elevador para no térreo, e Edgar segura a porta para que os dois saiam e lhes diz boa noite, com um sorriso que, embora fabricado e usado várias vezes, sempre lhe será incômodo.
Desce até o subsolo e brinca com os manobristas, fala sobre futebol, afinal é pra isso que ele lê o caderno de esportes no jornal, pela internet, todas as manhãs. Sente algum enfado, mas se alegra por participar desse pequeno universo coletivo. Além do mais, sabe que é uma atitude sábia ganhar a simpatia dos manobristas, para que tratem seu carro com mais cuidado do que os dos clientes comuns.
O carro de Edgar se mistura a esta enchente metálica que transborda todos os dias, e nem percebe mais o caminho. Os carros não são gente. Os carros são máquinas com vida e comportamento próprios. Disputam o mesmo espaço que não existe, lataria de hostilidade sobre carcaça de pressa infundada. Submergem numa alcatéia que rosna, e a qualquer interrupção todos berram, urram, guincham, os uivos de nossos ancestrais deram lugar a isso, a bestialidade ficou mais confortável e cercada de insulfilm. A miséria lá fora não existe, amenizada com punhados de moedas entregues com expressões condescendentes, a miséria de dentro é maquiada com música ruim, e todo o ar se condiciona. As últimas gretas são preenchidas por motos, o mal produzido por outra máquina, a da urgência, conveniência, inventadas necessidades. Incomoda a Edgar que a primeira reação natural ao próximo seja hostil, mas nos dias em que ele não abraça tanto sua hipocrisia, ele sabe que é dele que parte a primeira hostilidade. Em seus dias bons, ele também sabe que nem toda hostilidade é recíproca.
Um maço de cigarros de menta repousa esquecido no porta-objetos da porta do motorista. Edgar os olha e por um segundo se pergunta como é que foram parar lá. Não é a marca que ele fuma, e ele nunca fumaria um cigarro de menta. Edgar sabe que, secretamente, ou mesmo sem perceber, a marca de cigarro que se fuma te coloca em uma categoria. Se é julgado por isso, e ele definitivamente nunca quis ser alguém que fuma cigarro com sabor. A chuva para novamente, e parado no trânsito, Edgar se lembra que aquele maço era dela. Uma mulher que só fumava quando saía com ele, ela dizia, e ela disse também que tinha experimentado aquele cigarro e gostado. Edgar não gosta de ter sido obrigado a lembrar disso desse jeito, de forma abrupta, e retoma o controle de sua linha de pensamento, para evitar fazer o cálculo de há quanto tempo aquele maço está ali. Olha para o porta-objetos em frente ao freio de mão, onde está o seu maço de cigarros, da marca escolhida por ele, à qual seu paladar e dedos estão acostumados, e que todos sabem que é o cigarro que ele fuma. Ele se lembra que ela não gostava daquela marca, e por isso, sempre que ele a pegava em casa para saírem, ela pedia para pararem em algum lugar pra comprar cigarros. Pensando nisso, ele pega seu maço e seu isqueiro bic pequeno na mão, mas hesita. Se irrita consigo mesmo por deixar uma bobagem daquelas interferir num gesto tão pequeno e maquinal, e os coloca de volta no compartimento. O tráfego volta a andar e Edgar pega um cigarro de menta, não para se lembrar, mas para exercitar a indiferença. Estranha o tamanho, mais fino e longo que o seu, mas o sabor não lhe desagrada, afinal. Abre uma fresta do vidro da janela e abaixa o volume do rádio, não gosta que outras pessoas saibam o que ele está ouvindo.
O portão automático da garagem do prédio se levanta, Edgar cumprimenta o porteiro erguendo a mão, e acelera seu carro por entre as colunas do estacionamento acima da velocidade permitida pelas normas do condomínio, de propósito. Edgar não quer que a idade o faça perder o prazer das transgressões mínimas, e evita pensar no ridículo disto tudo.
A porta do elevador se abre, e ao entrar, Edgar sente cheiro de perfume, resíduo de alguém que acabara de sair. O elevador passa pelo térreo sem parar, e Edgar se sente aliviado por não ter que dividir espaço com ninguém, vertigem.
Abre a porta de seu apartamento ouvindo o labrador da vizinha latir, mas não quer se irritar, porque a vizinha é cega. A mochila é jogada no sofá, e sobre a mesa da sala ficam a carteira, as chaves, o documento do carro, o celular e o maço de cigarros. Vai até o quarto, tira o tênis e a camisa, suspira. Abre a janela, e lá fora, o tempo lhe parece suspenso. Quando tudo o que se quer é ir embora, tudo é demora e paciência.
Vai até a cozinha, o chão está escorregadio de gordura e sente preguiça antecipada porque sabe que vai ter de limpar, abre a geladeira, constata que se quiser comer alguma coisa, vai ter que cozinhar, então pega uma lata de cerveja, pega um cigarro do maço sobre a mesa da sala e vai para a sacada. Olha os carros na avenida. Em uma das sacadas do prédio em frente há um senhor fumando, e Edgar percebe nele uma postura resignada, pensa que talvez sua esposa não o deixe fumar dentro de casa. Os olhares dos dois se encontram, e se demoram por uma fração de segundo até que o senhor o cumprimenta dobrando os lábios pra dentro num semi sorriso e com um movimento de cabeça, gesto que Edgar repete da mesma forma, e ambos desviam o olhar. Numa outra sacada, um gato gordo está deitado sobre o parapeito, e em outra se pode ver um casal assistindo TV no sofá.
Edgar volta pra sala, se senta no sofá, olha pra TV desligada e pondera. Se levanta apressado, vai até o quarto, calça os tênis, veste uma camisa limpa, apanha a carteira, as chaves, o documento do carro, o celular e o maço de cigarros na mesa da sala, apaga todas as luzes, menos a da sacada. Caminha na escuridão pelo corredor. Tranca a porta, chama o elevador, que demora. Dessa vez não ouve o labrador da vizinha cega. Quando tudo o que se quer é ir embora, sempre se sabe que nunca se chega.
Quer ir embora. Não pra casa, a louça repousando na pia, a nuvem de tédio parada nos cômodos, os modos contidos da vida em prédio, o inevitável incômodo confortável. Nem pra qualquer outro lugar, vertigem de gente, qualquer um é multidão. Nem mulher, nem bar, nenhuma alegria urgente, toda euforia é confusão. Quando tudo o que se quer é ir embora, não existe lugar nenhum.
Os olhos de Edgar se detêm no monitor, e o atravessam. A janela ao seu lado treme com o movimento do trânsito que se intensifica. Todo o pessoal do escritório já foi embora, Edgar fica. Abre a janela do Messenger, mas sabe que ninguém ali o interessa. Quando tudo o que se quer é ir embora, tudo é espera, tudo é pressa. Desliga o computador, apanha a mochila da cadeira, desliga o interruptor, a sala inteira escurece, esquece uma janela aberta, volta, fecha, caminha na escuridão pelo corredor. Tranca a sala, chama o elevador, e impaciente, espera. Se alegra, sem nenhum motivo aparente, porque é quinta feira.
A porta se abre no quinto andar, Edgar amaldiçoa em silêncio, odeia dividir elevador. Vertigem de gente, qualquer um é multidão. Entram uma gorda vestida de branco e um senhor, Edgar balbucia uma saudação, e se odeia porque não tem controle sobre seu tom de voz em situações assim. Retesado, olha pra baixo, olha para as mãos, se olha no o espelho da parede do fundo do elevador, desvia rápido o olhar porque não quer que pensem que ele se preocupa demais com a aparência, ele não é desses, e ele sabe que não é, mas também sabe que provavelmente se olharia no espelho durante toda a descida se estivesse sozinho naquele elevador. E por ficar pensando nisso tudo, os poucos segundos da descida lhe parecem intermináveis, mas finalmente o elevador para no térreo, e Edgar segura a porta para que os dois saiam e lhes diz boa noite, com um sorriso que, embora fabricado e usado várias vezes, sempre lhe será incômodo.
Desce até o subsolo e brinca com os manobristas, fala sobre futebol, afinal é pra isso que ele lê o caderno de esportes no jornal, pela internet, todas as manhãs. Sente algum enfado, mas se alegra por participar desse pequeno universo coletivo. Além do mais, sabe que é uma atitude sábia ganhar a simpatia dos manobristas, para que tratem seu carro com mais cuidado do que os dos clientes comuns.
O carro de Edgar se mistura a esta enchente metálica que transborda todos os dias, e nem percebe mais o caminho. Os carros não são gente. Os carros são máquinas com vida e comportamento próprios. Disputam o mesmo espaço que não existe, lataria de hostilidade sobre carcaça de pressa infundada. Submergem numa alcatéia que rosna, e a qualquer interrupção todos berram, urram, guincham, os uivos de nossos ancestrais deram lugar a isso, a bestialidade ficou mais confortável e cercada de insulfilm. A miséria lá fora não existe, amenizada com punhados de moedas entregues com expressões condescendentes, a miséria de dentro é maquiada com música ruim, e todo o ar se condiciona. As últimas gretas são preenchidas por motos, o mal produzido por outra máquina, a da urgência, conveniência, inventadas necessidades. Incomoda a Edgar que a primeira reação natural ao próximo seja hostil, mas nos dias em que ele não abraça tanto sua hipocrisia, ele sabe que é dele que parte a primeira hostilidade. Em seus dias bons, ele também sabe que nem toda hostilidade é recíproca.
Um maço de cigarros de menta repousa esquecido no porta-objetos da porta do motorista. Edgar os olha e por um segundo se pergunta como é que foram parar lá. Não é a marca que ele fuma, e ele nunca fumaria um cigarro de menta. Edgar sabe que, secretamente, ou mesmo sem perceber, a marca de cigarro que se fuma te coloca em uma categoria. Se é julgado por isso, e ele definitivamente nunca quis ser alguém que fuma cigarro com sabor. A chuva para novamente, e parado no trânsito, Edgar se lembra que aquele maço era dela. Uma mulher que só fumava quando saía com ele, ela dizia, e ela disse também que tinha experimentado aquele cigarro e gostado. Edgar não gosta de ter sido obrigado a lembrar disso desse jeito, de forma abrupta, e retoma o controle de sua linha de pensamento, para evitar fazer o cálculo de há quanto tempo aquele maço está ali. Olha para o porta-objetos em frente ao freio de mão, onde está o seu maço de cigarros, da marca escolhida por ele, à qual seu paladar e dedos estão acostumados, e que todos sabem que é o cigarro que ele fuma. Ele se lembra que ela não gostava daquela marca, e por isso, sempre que ele a pegava em casa para saírem, ela pedia para pararem em algum lugar pra comprar cigarros. Pensando nisso, ele pega seu maço e seu isqueiro bic pequeno na mão, mas hesita. Se irrita consigo mesmo por deixar uma bobagem daquelas interferir num gesto tão pequeno e maquinal, e os coloca de volta no compartimento. O tráfego volta a andar e Edgar pega um cigarro de menta, não para se lembrar, mas para exercitar a indiferença. Estranha o tamanho, mais fino e longo que o seu, mas o sabor não lhe desagrada, afinal. Abre uma fresta do vidro da janela e abaixa o volume do rádio, não gosta que outras pessoas saibam o que ele está ouvindo.
O portão automático da garagem do prédio se levanta, Edgar cumprimenta o porteiro erguendo a mão, e acelera seu carro por entre as colunas do estacionamento acima da velocidade permitida pelas normas do condomínio, de propósito. Edgar não quer que a idade o faça perder o prazer das transgressões mínimas, e evita pensar no ridículo disto tudo.
A porta do elevador se abre, e ao entrar, Edgar sente cheiro de perfume, resíduo de alguém que acabara de sair. O elevador passa pelo térreo sem parar, e Edgar se sente aliviado por não ter que dividir espaço com ninguém, vertigem.
Abre a porta de seu apartamento ouvindo o labrador da vizinha latir, mas não quer se irritar, porque a vizinha é cega. A mochila é jogada no sofá, e sobre a mesa da sala ficam a carteira, as chaves, o documento do carro, o celular e o maço de cigarros. Vai até o quarto, tira o tênis e a camisa, suspira. Abre a janela, e lá fora, o tempo lhe parece suspenso. Quando tudo o que se quer é ir embora, tudo é demora e paciência.
Vai até a cozinha, o chão está escorregadio de gordura e sente preguiça antecipada porque sabe que vai ter de limpar, abre a geladeira, constata que se quiser comer alguma coisa, vai ter que cozinhar, então pega uma lata de cerveja, pega um cigarro do maço sobre a mesa da sala e vai para a sacada. Olha os carros na avenida. Em uma das sacadas do prédio em frente há um senhor fumando, e Edgar percebe nele uma postura resignada, pensa que talvez sua esposa não o deixe fumar dentro de casa. Os olhares dos dois se encontram, e se demoram por uma fração de segundo até que o senhor o cumprimenta dobrando os lábios pra dentro num semi sorriso e com um movimento de cabeça, gesto que Edgar repete da mesma forma, e ambos desviam o olhar. Numa outra sacada, um gato gordo está deitado sobre o parapeito, e em outra se pode ver um casal assistindo TV no sofá.
Edgar volta pra sala, se senta no sofá, olha pra TV desligada e pondera. Se levanta apressado, vai até o quarto, calça os tênis, veste uma camisa limpa, apanha a carteira, as chaves, o documento do carro, o celular e o maço de cigarros na mesa da sala, apaga todas as luzes, menos a da sacada. Caminha na escuridão pelo corredor. Tranca a porta, chama o elevador, que demora. Dessa vez não ouve o labrador da vizinha cega. Quando tudo o que se quer é ir embora, sempre se sabe que nunca se chega.
sábado, 14 de março de 2009
Das sugestões serenas, isentas e fiéis
"All I want is a room with a view. A sight worth seeing. (...)
A small remembrance of something more solid"
Blondie - Picture This
Edgar acorda de um cochilo e se lembra que é sábado. Olha pro relógio no criado mudo, e vê que são quase oito e meia da noite. Tem sono ainda, seu corpo ainda está impregnado de torpor, olha em volta do quarto escuro, e se deita de barriga pra cima, descobrindo-se atirando a colcha no chão. Quer se levantar, não quer perder tempo, mas não tem o que fazer. Presta atenção pra ver se tem alguma necessidade. Não. Nem fome, nem vontade de ir ao banheiro, nem vontade de sair, nem vontade de fazer qualquer coisa especificamente. Mas é sábado e não quer mais ficar dormindo em seu único dia realmente livre. Consulta sua mente pra ver se tem algo que precisa ser feito, e não pensa em nada urgente ou possível a esta hora. Reúne forças e se senta na cama, virando de lado e colocando os pés no chão. Esfrega as mãos no rosto e se levanta. Abre a janela, não gosta do cheiro viciado de gente dormida. O céu já está escuro, está quente e não chove. Tampouco venta. Caminha até a porta, tropeçando nas coisas no chão, que não se lembra o que são. Sai do quarto, a casa está toda escura. Vai até o banheiro, acende a luz, que lhe fere os olhos, abaixa a cabeça por alguns instantes, para que seus olhos se acostumem. Se olha no espelho, arregala os olhos, franze a testa, arqueia as sobrancelhas, abre a boca o máximo que pode, quer acordar seus músculos, passa as mãos pelos lados da cabeça, deixando seus cabelos ainda mais bagunçados. Lava o rosto e assua o nariz na pia, se olha no espelho uma outra vez e pensa que precisa fazer a barba, mas deixa pro domingo. Se enxuga e urina tentando manter o jato no centro do vaso, sem pingar fora.
Caminha pela casa, vai até a cozinha, para e pensa no que quer ou deve fazer. Bebe água. Pega um copo, enche até a metade de café morno, feito pela manhã, esquece de colocar açúcar, dá o primeiro gole, faz uma careta e vira tudo de uma vez. Deixa o copo na pia e volta para o quarto. Deita na cama, liga a TV e acende um cigarro. Vaga pelos canais sem nada que lhe interesse. Desliga a TV e pega o notebook. Ainda não sabe o que quer fazer. Volta pra cozinha, abre a geladeira, pega a garrafa de sakê e enche meio copo. Volta pra cama, põe o notebook no colo. Percebe que não está com disposição para nada. Quer criar algo inovador e definitivo, mas não sabe de onde tirar forças para tanto, e, no entanto, ainda evita duvidar. Fica parado, com as mãos inertes sobre o teclado, a tela do Word em branco, o prompt pulsando, exigindo algo, seu piscar constante e ritmado é quase como um julgamento, insuportável.
De repente, em meio ao quase silêncio da cidade lá fora, uma cigarra começa a cantar. Edgar se surpreende, há quanto tempo não ouvia este ruído. Pensa e crê que nunca o tinha ouvido em sua cidade. Sorri inadvertidamente, ergue seu olhar para o nada, e saboreia o canto do inseto, onde quer que ele esteja. Imóvel, escuta até o final, até que o canto vai se tornando mais estridente, descompassado, diminuindo até desaparecer. Não pensa em nada por alguns segundos, até que suspira, sorri outra vez e resigna-se. Nada será dito esta noite.
A small remembrance of something more solid"
Blondie - Picture This
Edgar acorda de um cochilo e se lembra que é sábado. Olha pro relógio no criado mudo, e vê que são quase oito e meia da noite. Tem sono ainda, seu corpo ainda está impregnado de torpor, olha em volta do quarto escuro, e se deita de barriga pra cima, descobrindo-se atirando a colcha no chão. Quer se levantar, não quer perder tempo, mas não tem o que fazer. Presta atenção pra ver se tem alguma necessidade. Não. Nem fome, nem vontade de ir ao banheiro, nem vontade de sair, nem vontade de fazer qualquer coisa especificamente. Mas é sábado e não quer mais ficar dormindo em seu único dia realmente livre. Consulta sua mente pra ver se tem algo que precisa ser feito, e não pensa em nada urgente ou possível a esta hora. Reúne forças e se senta na cama, virando de lado e colocando os pés no chão. Esfrega as mãos no rosto e se levanta. Abre a janela, não gosta do cheiro viciado de gente dormida. O céu já está escuro, está quente e não chove. Tampouco venta. Caminha até a porta, tropeçando nas coisas no chão, que não se lembra o que são. Sai do quarto, a casa está toda escura. Vai até o banheiro, acende a luz, que lhe fere os olhos, abaixa a cabeça por alguns instantes, para que seus olhos se acostumem. Se olha no espelho, arregala os olhos, franze a testa, arqueia as sobrancelhas, abre a boca o máximo que pode, quer acordar seus músculos, passa as mãos pelos lados da cabeça, deixando seus cabelos ainda mais bagunçados. Lava o rosto e assua o nariz na pia, se olha no espelho uma outra vez e pensa que precisa fazer a barba, mas deixa pro domingo. Se enxuga e urina tentando manter o jato no centro do vaso, sem pingar fora.
Caminha pela casa, vai até a cozinha, para e pensa no que quer ou deve fazer. Bebe água. Pega um copo, enche até a metade de café morno, feito pela manhã, esquece de colocar açúcar, dá o primeiro gole, faz uma careta e vira tudo de uma vez. Deixa o copo na pia e volta para o quarto. Deita na cama, liga a TV e acende um cigarro. Vaga pelos canais sem nada que lhe interesse. Desliga a TV e pega o notebook. Ainda não sabe o que quer fazer. Volta pra cozinha, abre a geladeira, pega a garrafa de sakê e enche meio copo. Volta pra cama, põe o notebook no colo. Percebe que não está com disposição para nada. Quer criar algo inovador e definitivo, mas não sabe de onde tirar forças para tanto, e, no entanto, ainda evita duvidar. Fica parado, com as mãos inertes sobre o teclado, a tela do Word em branco, o prompt pulsando, exigindo algo, seu piscar constante e ritmado é quase como um julgamento, insuportável.
De repente, em meio ao quase silêncio da cidade lá fora, uma cigarra começa a cantar. Edgar se surpreende, há quanto tempo não ouvia este ruído. Pensa e crê que nunca o tinha ouvido em sua cidade. Sorri inadvertidamente, ergue seu olhar para o nada, e saboreia o canto do inseto, onde quer que ele esteja. Imóvel, escuta até o final, até que o canto vai se tornando mais estridente, descompassado, diminuindo até desaparecer. Não pensa em nada por alguns segundos, até que suspira, sorri outra vez e resigna-se. Nada será dito esta noite.
sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009
De outros carnavais
Eu me cerquei de silêncio pra nunca mais ouvir teu nome. Eu já matei qualquer fome, eu já brinquei carnaval. E o mal que me consome eu conservei no sal. Por bem, eu fui homem.
Eu virei minha cara, eu parei para tudo, acalmar a tarde. Eu mudei, e o mundo sempre morde.
Mudo, matar de mim tudo que nasce. Minha outra face ainda arde.
Eu me contentei com sorriso, eu fiz rir, eu quis do outro a qualquer custo, e justo quando estava pra partir, ganhei. Apartei de mim as outras partes, eu sei que assusto se olhar demais. Eu não sei mais o que quero falar.
E o que me chama à noite, nêga, me carrega.
E se me chama à noite, nêga, se encarrega.
E se a chama foi-se, nêga, não se entrega.
Me deixa uma noite, nêga, não me nega.
Eu já dancei batucada, nada demais, a cada fossa nova que me provoque, enrolo, gosto mais, nada me faz desistir do choque, não me toque, você não engole o que me satisfaz.
Carreguei em mim o cheiro dos povos, voraz massa que consome os dias, de amargar tantas longas demoras. Não sou eu, não sou um, fui embora. Não sou nenhum portador de alegrias. Eu desperdicei meu brilho, fui filho do fim do mundo, no fundo dos olhos eu colho tudo que não me dizem. Reluz em outros o que escondo em mim, assim eu finjo que me conduzem. E aos que me fogem eu digo sim.
Viver para evitar alguém
Também é morrer sem se separar.
Eu virei minha cara, eu parei para tudo, acalmar a tarde. Eu mudei, e o mundo sempre morde.
Mudo, matar de mim tudo que nasce. Minha outra face ainda arde.
Eu me contentei com sorriso, eu fiz rir, eu quis do outro a qualquer custo, e justo quando estava pra partir, ganhei. Apartei de mim as outras partes, eu sei que assusto se olhar demais. Eu não sei mais o que quero falar.
E o que me chama à noite, nêga, me carrega.
E se me chama à noite, nêga, se encarrega.
E se a chama foi-se, nêga, não se entrega.
Me deixa uma noite, nêga, não me nega.
Eu já dancei batucada, nada demais, a cada fossa nova que me provoque, enrolo, gosto mais, nada me faz desistir do choque, não me toque, você não engole o que me satisfaz.
Carreguei em mim o cheiro dos povos, voraz massa que consome os dias, de amargar tantas longas demoras. Não sou eu, não sou um, fui embora. Não sou nenhum portador de alegrias. Eu desperdicei meu brilho, fui filho do fim do mundo, no fundo dos olhos eu colho tudo que não me dizem. Reluz em outros o que escondo em mim, assim eu finjo que me conduzem. E aos que me fogem eu digo sim.
Viver para evitar alguém
Também é morrer sem se separar.
sábado, 7 de fevereiro de 2009
Das elegâncias desperdiçadas
O horário da elegância já passou há algum tempo. Eu sei por que tudo agora é névoa e náusea, eu olho pro outro lado evitando a fumaça, tudo em mim é a necessidade de regurgitar, tomar uma coca-cola e desabar na cama. Talvez não agora. Os copos ainda não se esvaziaram, os assuntos interrompidos ainda não foram todos retomados, os dedos tamborilam na mesa, a garganta adormece, as extremidades formigam, e ela me olha. Eu preciso bolar um estratagema, para ir ao banheiro, expulsar o que precisa sair, e ir embora. Preciso ir embora sem que este ato dê tanto trabalho. Mas os olhos dela acompanham meu caminho. Eu já não participo da conversa, eu já não esvazio meu copo tanto como no começo da noite, eu parei de encher os copos de todos na mesa. Eu apalpo meus bolsos e me certifico de que tenho todo o necessário. Eu olho em volta e verifico se ninguém vai me atrapalhar. Eu me levanto e vou até o banheiro, eu entro no corredor até a última porta, eu entro na cabine, eu prendo a porta com o pé porque não tem tranca. Eu me ajoelho prendendo a porta com a coxa, eu enfio o dedo na garganta, eu tento não fazer barulho, eu deixo de me preocupar, eu levanto pálido e latejante. Eu tenho um chiclete no bolso, justamente para este fim. Eu dou descarga duas vezes.
Eu me olho no espelho, eu jogo água no rosto, eu lavo minha boca, eu lavo minhas mãos. A noite agora já fugiu ao meu controle.
Eu saio cabisbaixo, ela me aguarda sutilmente na saída do corredor, eu levanto os olhos, que encontram os dela, eu não digo nada, eu não poderia, ou conseguiria.
Eu mastigo o chiclete mais forte, e num impulso, eu a puxo pelo pulso pra dentro da cabine mais próxima, o cheiro do cabelo dela faz a náusea voltar. Não há pé que feche a porta, a perna que se abre, o gemido que parte, dissimulado, que se encerra em mim, que nada insinuo, que nada ensino. Sinalizo o fim antes do desfecho, abro a porta e a deixo.
Eu fujo à francesa, sujo, a tristeza não me encontra, nem me apavora. Fui embora.
Eu chego no apartamento, entro lentamente, o tormento novamente de evitar qualquer ruído. Caído, no chão do banheiro, eu primeiro expulso o excesso, depois tento escrever. Sem sucesso.
Eu me olho no espelho, eu jogo água no rosto, eu lavo minha boca, eu lavo minhas mãos. A noite agora já fugiu ao meu controle.
Eu saio cabisbaixo, ela me aguarda sutilmente na saída do corredor, eu levanto os olhos, que encontram os dela, eu não digo nada, eu não poderia, ou conseguiria.
Eu mastigo o chiclete mais forte, e num impulso, eu a puxo pelo pulso pra dentro da cabine mais próxima, o cheiro do cabelo dela faz a náusea voltar. Não há pé que feche a porta, a perna que se abre, o gemido que parte, dissimulado, que se encerra em mim, que nada insinuo, que nada ensino. Sinalizo o fim antes do desfecho, abro a porta e a deixo.
Eu fujo à francesa, sujo, a tristeza não me encontra, nem me apavora. Fui embora.
Eu chego no apartamento, entro lentamente, o tormento novamente de evitar qualquer ruído. Caído, no chão do banheiro, eu primeiro expulso o excesso, depois tento escrever. Sem sucesso.
sexta-feira, 30 de janeiro de 2009
Ela ganhou um conto sem saber
A mulher que eu olho agora fala espanhol, enquanto fuma, elegante como uma serpente. O braço reto, vertical, cabelos negros sobre a blusa de lã verde, e a garrafa de cerveja cuzqueña sobre a mesa.
Todos à minha volta pensam em línguas diferentes da minha.
Começou como tensão, os músculos da perna rijos, e o coração lançando mais sangue do que as veias pedem. A bênção etérea dos calmantes a dissolveu, e eu pude observar maravilhado os picos das montanhas cobertos de neve. Soy latino.
Ela agora não fuma nem bebe, apenas apóia a cabeça sobre o punho enquanto olha pro nada, e eu me lembro que tive que atravessar um continente só pra ver a mesma babilônia. Na confusão de dois dias sem dormir, entre alguns países, eu também não sei em que língua penso.
Talvez na língua dela, que leva em si o hálito de tudo o que eu finjo entender e nunca (v)terei.
Todos à minha volta pensam em línguas diferentes da minha.
Começou como tensão, os músculos da perna rijos, e o coração lançando mais sangue do que as veias pedem. A bênção etérea dos calmantes a dissolveu, e eu pude observar maravilhado os picos das montanhas cobertos de neve. Soy latino.
Ela agora não fuma nem bebe, apenas apóia a cabeça sobre o punho enquanto olha pro nada, e eu me lembro que tive que atravessar um continente só pra ver a mesma babilônia. Na confusão de dois dias sem dormir, entre alguns países, eu também não sei em que língua penso.
Talvez na língua dela, que leva em si o hálito de tudo o que eu finjo entender e nunca (v)terei.
De repente a luz lhe pareceu clara demais
De repente a luz lhe pareceu clara demais, amarela demais, demasiada. Fechou a boca que arquejava, semicerrou os olhos que a claridade feria, e de palma aberta, passou a mão do peito ao ventre, para tirar o suor. Sua pele alva de meses sem sol, juntamente com a viscosidade e o brilho úmido gerado pelo esforço físico lhe fez vir à mente qualquer sensação de desperdício. A visão de seu pau, avermelhado e inchado, também não lhe agradou. Ergueu as costas, deu a volta por cima dela, que ainda tinha os olhos fechados e alguns fios de cabelo desgrenhado no rosto, e saiu da cama. Vestiu a cueca e procurou a carteira na calça jogada no chão. Ela abriu os olhos, tirou os cabelos do rosto, e puxou o travesseiro, que estava no chão, pra detrás de sua cabeça. Ele sentou na beira da cama, enquanto com os dentes desamarrava, ao mesmo tempo com cuidado e impaciência, o pequenino saco plástico.
Ela esticou o braço e abriu uma fresta na veneziana. Não moveu o corpo. Tateando, procurou o cigarro no pequeno criado mudo, sobre o qual estavam o rádio relógio, um abajur de lava verde, pequenos papéis, extratos de banco, meio copo de whisky com o gelo há muito derretido, um frasco plástico de calmantes, um frasco plástico de energéticos, um cinzeiro de metal azul, um celular, um mp3 player, uma pilha de livros já um tanto cobertos de pó, e nenhum maço de cigarros.
Sem olhar pra ela, ele ainda vasculhava algo mais na carteira, puxou a calça novamente, tirou um maço e o isqueiro de um dos bolsos da frente, levou o cigarro à boca, acendeu e estendeu-lhe a mão com o cigarro aceso entre os dedos, ainda sem olhar pra ela.
Tirou o cartão do banco da carteira, deixou sobre a ponta da cama ao lado do saquinho plástico, fechou a carteira, e hesitou por um segundo. Passou mão, devagar e firme, do peito ao ventre dela. Não pareceu satisfeito. Pegou sua camiseta do chão, e ainda sem olhar pra ela, lhe enxugou o colo, os seios e a barriga.
Ela levou um dos braços atrás da cabeça, e com o outro braço erguido segurando o cigarro, erguia também levemente seu queixo para soprar a fumaça que contribuía com o ar viciado e denso que preenchia o quarto.
Ele pegou o saquinho, e olhando-a nos olhos, despejou cuidadosamente o pó branco em uma linha que ia do umbigo até o meio das costelas, controlando a quantidade que caía com precisa alternância da pressão dos dedos. Ela encolheu a barriga e riu quase em silêncio com a fumaça do cigarro saindo de sua boca em velocidade desordenada. Tente não se mexer, ele disse, e com o cartão plástico perfilava a substância no sutil côncavo vertical no meio da barriga, enquanto ela travava os dentes e prendia o ar para não rir. Percorreu rapidamente o corpo dela com os olhos, voltou a cabeça para a beira da cama onde estava sentado, e num rápido movimento, agachou-se até sua carteira no chão, abriu, olhou o compartimento onde guardava o dinheiro, havia duas notas de dez e uma de dois, pensou por um instante, e pegou a de dois por lhe parecer a mais nova, embora isto fosse uma atitude pouco aceitável e nada inteligente. Deixou a carteira no chão, e de pé, olhou pra ela enquanto enrolava a nota com hábeis e rápidos movimentos de dedos. Pensou que aquela era uma bonita visão, embora também lhe causasse certo enfado. Abaixou-se sobre ela até ter seu rosto a meio palmo do vão dos seios, onde a pele parecia mais alva, e percorreu com a nota a linha que havia feito, e ela, que estava com o ar retido e com a barriga encolhida, não pôde evitar um suspiro que acabou por espalhar um pouco e fazer com que ficassem alguns resquícios dispersos sobre sua pele. Ele ergueu a cabeça, inspirou fundo e com força, e com as mãos apoiadas na cama, cada mão próxima a um dos flancos dela, olhou-a novamente, para novamente abaixar a cabeça e lamber verticalmente todo vestígio deixado, o que a fez soltar uma risada. Ele fez uma careta quando sentiu o gosto amargo, mas em seguida sua língua adormeceu e ele gostou de ter perdido o agridoce gosto de sexo que tinha na boca. Pousou a face contra o ventre dela por um instante, achou aquele gesto descabido, ela abaixou a mão para acariciar seus cabelos, mas antes que o tocasse, ele levantou e foi pegar o maço de cigarros. Pôs um no canto da boca, acendeu com uma só mão e jogou maço e isqueiro sobre a calça no chão. Passou por sobre as pernas dela até chegar ao outro lado da cama, onde se sentou tocando as costas na parede gelada, contraiu as espaldas até acostumar-se à temperatura, deu uma tragada e soltou a fumaça com um suspiro, recostando a cabeça.
Não quis pensar no desconforto da parede gelada, nem quis pensar no desconforto da situação, agora que os ânimos esfriavam; e não pensou no desconforto que o vento trazido pela persiana semi aberta causava no seu corpo semi nu. Não quis pensar em nada, até que viesse a lucidez esperada, que sempre vinha. Ela ainda fumava, embora agora já não o olhasse. Ela repousava a cabeça no travesseiro, com os olhos voltados para o teto, mas não olhava o teto propriamente, seu olhar o atravessava, seu olhar era como o olhar vítreo de algo recém morto.
Ele notou que suas mãos começavam a tremer, e sabia que não era pela parede, pela situação ou pelo vento, todos esses frios somados. Ainda se esforçava para evitar os pensamentos recorrentes.
Ele queria não sentir repulsa, ele queria não sentir remorso, ele queria não sentir ressaca, não a moral. Ele queria não sentir o desconforto de não querer estar onde se está, o onipresente desejo de ir embora, que nunca cessa. Mas ele sabia que viria.
Ele sabia que viria. Ele nunca sabe exatamente quando, a hora exata, mas sabe que sempre vem. Mesmo quando há os longos períodos de tempo sem vir, períodos de otimismo, entretenimento, negação, ou qualquer coisa assim, mesmo quando parecia que nunca mais voltaria, sempre houve algo no fundo que nunca se deixou convencer de que não viesse mais. Ele sabe exatamente a hora em que chega. Não há propriamente alguma mudança física, pelo menos não que ele consiga perceber, talvez seu olhar mude, talvez algum gesto seu se torne mais brando, mais sutil. A vera nuvem solitária, que troveja em sua cabeça como uma noite de ano-novo, o toque gelado e cadavérico de alguma deusa morta.
Às vezes com maior ou menor intensidade, às vezes mais ou menos fácil de abafar, postergar, dissimular, ou até aproveitar, mas sempre vem. E talvez sim, sempre virá. Às vezes ele fica grato, alguma vaidade sua aceita isso como parte ou fonte de qualquer brilho, às vezes só o faz sentir-se ridículo. Álcool, sexo, companhia, solidão, qualquer fuga, qualquer disfarce, qualquer placebo, nada evita, no máximo altera, transforma, mas sempre há o impacto, a estranheza, qualquer cortina cinzenta no olhar, qualquer cansaço nos gestos, qualquer peso no semblante, qualquer lucidez elaborada nos pensamentos.
Ela agora já apagou o cigarro, o cinzeiro de metal azul ainda solta fumaça, e apoiando-se com as duas mãos, ergue o tronco até recostar-se no travesseiro atrás dela, tirando suas pernas debaixo das pernas dele, porque já começavam a formigar. Não se conheciam há muito tempo, mas tampouco era sua primeira vez juntos, por isso ela sabia que freqüentemente, depois do sexo, ele ficava daquele jeito. E mesmo quando não era depois do sexo, às vezes ele era tomado daquilo, aquele jeito, e o melhor que ela podia fazer, isso já tinha aprendido, era não fazer perguntas demais, nem tentar conversar demais. Apesar de ser exatamente isso, esse jeito estranho e esse mistério intermitente o que mais a atraía nele, ele podia ficar agressivo, e não que houvesse qualquer violência física, mas as coisas que ele podia dizer eram tão desconcertantemente exatas e cruéis, que podiam causar mágoas difíceis de apagar. Levantou-se, pegou sua calcinha que estava no chão, em frente à porta do quarto, vestiu-a, olhou em volta, agachou sobre a calça dele, onde estavam a carteira, o saquinho, o cartão e a nota enrolada, levou-os ao criado mudo, abaixou-se e levantou em rápidos movimentos, pegou o copo de whisky e foi até a cozinha para enchê-lo novamente.
Ele a olhava em silêncio, e quando ficou sozinho no quarto, foi ao criado mudo, pois ela havia deixado para ele, e embora ele achasse que talvez fosse demais, enrolava rapidamente a nota enquanto abria a janela totalmente. Acendeu outro cigarro e apoiou os cotovelos sobre o parapeito. Ela voltou ao quarto com dois copos de whisky com gelo, e deu um a ele, que esforçou-se para assumir uma expressão quase cândida, com um meio sorriso na face, e beijou-a na testa, virando a cara logo em seguida. Ela sentou novamente na cama, e mesmo que não o olhasse, ele sabia que estava atenta a qualquer movimento seu, esperando o momento de voltarem a conversar.
Daquela janela do 14º andar, ele olhava os poucos carros que singravam a madrugada de céu púrpura, enquanto pensava no grande filho da puta que era, pois poderia mostrar um pouco mais de carinho pela garota deitada na cama, em silêncio, que notadamente gostava dele, mas em vez disso, ele obedecia a esta maldita síndrome ou sabe-se lá o quê que o fazia ser ríspido com qualquer pessoa que ousasse demonstrar afeto. Podia ter se virado e começado a conversar com ela, qualquer assunto ameno bastaria para ela, mas ao invés disso, continuou a olhar os carros, imaginando as pessoas dentro deles, sabendo que lhe viria à cabeça o que sempre vinha e viria, a ridícula e desnecessariamente perturbadora pergunta: “como conseguem?”.
E, como já não era mais assim tão jovem, e a puberdade já havia passado há uma década, pensar em coisas deste tipo não era nenhum questionamento saudável para a construção de uma personalidade, e sim um clichê recorrente, e exatamente a redundância desta expressão só servia para fazê-lo sentir-se mais ridículo e infantil.
De nada valeria pensar em que parte da sua vida ele escolheu ou foi levado a tomar este “caminho”, se é que houve algum divisor de águas, a sempre tomar distância de situações, acontecimentos, oportunidade ou crise, e analisar tudo, dividir, categorizar, comparar, sempre tentando encontrar padrões, e pateticamente sempre se esforçar ao máximo para não se ver completamente dentro de nenhum deles, nunca sentir, fugir sempre, querer ir embora, agora e sempre, agora.
Fechar-se cada vez mais, impondo aos outros testes, condições, provações, vestir-se de alguma aura qualquer, enclausurar-se em algum véu cada vez mais turvo, querendo que alguém o adivinhe, mas tornando isso mais difícil de acontecer, ano após ano. Embriagar-se em uma esperança romantizada, e nunca, nunca admitida, de que um dia será salvo, encontrado e resgatado por algo ou alguém que preencha os requisitos que cada vez mais aumentam e se tornam mais absurdos. E enquanto espera o impossível, seguir achando que não há ninguém que o mereça, porque toda esta lama que ele mesmo cria e se afunda lhe dá um sentimento oculto de superioridade – afinal, carregar tamanha maldição (mesmo que criada propositalmente) lhe confere um valor tão grande que não deve ser desperdiçado com qualquer um, seria dar pérolas aos porcos.
Ele abanou a cabeça, jogando o toco de cigarro com força para tentar acertar a calçada do lado oposto da rua, mas o vento que soprava só permitiu que caísse sobre a faixa dupla amarela do meio da pista. Voltou a olhar pra dentro do quarto, ela agora estava sentada sobre a cama, lendo um dos livros dele que estavam sobre o criado mudo. Era uma cena interessante, ela com Dostoiévski aberto no colo, e acima dela, na parede, diversos pequenos quadros, a capa de Abbey Road, a capa de Beggar´s Banket, Hemingway com um suéter de lã de marinheiros irlandeses, o quarto de Van Gogh, Ninfas e Sátiro de Bouguereau, Jeanne Moreau vestida de homem correndo em uma ponte. Esta visão, embora contivesse sua beleza, o fez pensar que ela não pertencia ao padrão das referências em volta dela. E como ele já estava tomado deste fluxo vicioso de pensamentos, reconheceu que esta era outra das partes dessa tal maldição. Além de manter-se inatingível, também colocava certas coisas, sonhos, objetos e pessoas em um patamar nunca possível de ser alcançado, por qualquer motivo ou obstáculo que houvesse ou fosse por ele próprio inventado. Mais um conflito ilógico ao qual se infligia, para gerar uma auto-sabotagem constante que justificava o apego à tristeza, à melancolia e ao tormento. Porque embora não houvesse sentido em todo este processo, ele acabava por torná-lo superior, mais sábio, mais sério, mais inteligente, uma vez que toda a constante observação e análise ampliavam a sua visão, e eram fruto dela.
Observá-la agora, sentada, nua, serena, talvez sem fazer idéia do que se passava pela cabeça dele - embora o respeitasse - fez com que ele sentisse maior essa distância que lhe permitia tais percepções. Voltou-se novamente à janela, pois lhe queimava esta inveja que, embora jamais assumisse por completo, sentia da alegria, simplicidade, e satisfações que as pessoas que ele considerava simplórias e ignorantes conseguiam obter. Ele não as conseguia, e era o que, ainda secretamente, mais almejava.
Debruçou-se mais sobre o parapeito, para sentir mais o vento no rosto, enquanto fechava os olhos com força e cerrava os dentes, pois sabia que era dessa inveja suprimida que vinha o ódio que o acompanhava há muito, a revolta que tornava cáustico o sangue nas veias, o sentimento de estar sempre sendo injustiçado, já que acreditava ser melhor, e mais merecedor do que estas outras pessoas. Tudo isso que era gerado dentro dele, aliado à Inteligência que ele indiscutivelmente tinha, ainda que limitada, fazia-o chegar à constatação de que de alguma forma entendia algo essencial sobre a vida, e que existia alguma lógica oculta nesta tal injustiça que sofria. Esta lógica era o que criava sua Inteligência e lhe dava sua visão, e os produtos desta lógica eram também o que o impedia de ter as coisas simples que queria, pois o impedia de ser simples como elas.
Todas essas dualidades que bailavam dentro dele geravam naturalmente uma escolha constante, e sua vaidade sempre o levava a escolher o lado mais sombrio, pois embora este lado tivesse menos benefícios práticos, tomar este caminho era o que lhe trazia o seu brilho, deste suposto brilho vinha o seu orgulho, e seu orgulho o mantinha neste eterno ciclo doentio.
Todas estas linhas de pensamento começavam a fazer doer sua cabeça, como se algo a pressionasse pelas frontes, e percebeu que apertava a mão que segurava o copo que agora só continha os restos do gelo que derretia. Pousou o copo sobre o criado mudo, pegou o pequeno saco plástico, o cartão e a nota enrolada, repetiu novamente a conhecida operação, debruçou-se sobre o móvel, ergueu a cabeça olhando para o teto e aspirando com força, e girando o tronco, de joelhos, projetou-se sobre ela mordendo sua coxa. Ela deu um grito, e com o susto suspendeu as duas pernas, ele apoiou suas mãos sobre as coxas dela abaixando-as novamente, e com este movimento ergueu a cabeça até beijá-la subitamente, para que a forma violenta e inesperada do carinho demonstrado conferisse mais valor ao gesto. Tudo isto aconteceu numa fração de segundo, e passado o susto inicial, ainda com as bocas coladas, ela riu e deu-lhe um tapa no ombro. Ele afastou a cabeça um pouco, olhou-a nos olhos, e sorriu brejeiramente. O sorriso dela se estreitou, e ela disse – Às vezes você me assusta um pouco. Ele já estava novamente de pé, com seu copo vazio na mão, e enquanto atravessava a porta saindo do quarto, respondeu – Talvez seja essa a intenção.
Atravessou a sala no escuro, tateando com a mão direita a parede que o levaria até a cozinha, acendeu a luz, colocou o copo na pia, seguiu até a área de serviço, entrou no pequeno banheiro que só usava em ocasiões específicas, abriu a minúscula janela, ajoelhou no chão sobre a privada, enfiou o dedo mínimo na goela uma, duas, três, quatro vezes até conseguir vomitar, fez força até que a ânsia passasse, enfiou o dedo mais uma vez, sentiu as tripas revolverem-se sem ter nada mais o que expulsar, aguardou alguns segundos, levantou-se e deu descarga. Enxaguou a boca repetidas vezes, lavou o rosto, e olhou seu rosto pálido e seus olhos vermelhos no espelho. A imagem já lhe era um tanto familiar, quase lhe causava algum prazer não confessado.
Hipnotizado pelo seu reflexo, reconheceu em seu próprio olhar uma expressão de reprovação, de saber que todos esses conflitos se faziam ainda mais ridículos por serem inúteis. Afinal, todas estas constatações de dubiedades só eram possíveis porque já existia, desde sempre, a capacidade de enxergar diferentes lados. Ou seja, o processo se invertia, já que esta tal visão era causadora dos conflitos, e não conseqüência deles. E isto tornava tudo inevitável, indiferente a qualquer questionamento. E era neste esclarecimento que residia o cerne da angústia, afinal, ser simplório, segundo a linha de pensamento que adotava, além de tornar possível conseguir as coisas que ele se obrigava a desdenhar, ainda parecia trazer paz de espírito, porque uma vez que se desconhece qualquer possibilidade de ser algo diferente, se está naturalmente livre da agonia de ficar analisando, comparando e sofrendo com escolhas.
Saiu do banheiro deixando a porta entreaberta, atravessou a área de serviço e deteve-se na cozinha. Olhou a garrafa de whisky em cima do balcão em frente à pia, e sentiu seu estômago se contorcer outra vez. Respirou fundo, colocou a garrafa em cima da pia, abriu o congelador, retirou a forma de gelo, torceu-a, deixou cair algumas pedras sobre a pia, guardou a forma de volta, colocou três pedras de gelo em cada copo, colocou o whisky até o líquido ficar um dedo acima das pedras. Despejou um pouco de água da torneira dentro do seu copo e foi caminhando pela sala escura, tateando com o cotovelo a parede que o guiaria de volta ao quarto. O ar ainda lhe parecia carregado, pesado, preenchido de algo. Ela agora estava deitada de bruços sobre a cama, lendo, balançando os pés verticalmente. Ele colocou os dois copos sobre o criado mudo, debruçou-se sobre o móvel mais uma vez, ergue-se e tomou um gole que lhe pareceu agressivo.
Deitou-se de lado no espaço que restava da cama, no vão das pernas dela, e repousou o rosto sobre suas nádegas. Ela fez qualquer comentário ao qual ele não ouviu, e respondeu com um grunhido. Sem mexer a cabeça, olhou pela janela e percebeu que dali podia ver a lua, que aparecia no único vão descoberto do céu carregado de nuvens. Era minguante, e lhe trouxe certa tranqüilidade saber que podia distinguir coisas assim, simples e antigas.
Pensou que, toda essa confusão que - inutilmente ou não – há muito tempo lhe perturbava a cabeça inúmeras vezes, se tornava mais odiosa através dos anos. Se no começo, digamos ao sair da infância, essa confusão talvez também o fizesse sentir-se diferente, especial de alguma forma, essa impressão foi se deteriorando com a idade, maturidade, ou simplesmente o passar do tempo. Ao longo da vida, ele foi descobrindo em outras pessoas, em livros, canções ou qualquer obra, e mesmo em gestos, elementos desta mesma confusão, e percebendo que talvez ele não fosse assim tão diferente porra nenhuma. E sim que este sentimento de deslocamento é parte deste padrão em que ele está incluído. Sim, era isso, e perceber isso também trazia o sentimento de ridículo, jogando-o de volta ao redemoinho caótico que em noites como essa ele se deixava consumir.
Tal constatação não lhe trazia nenhum conforto pela identificação, e sim, outra vez, repulsa. Porque percebia que era e fazia parte de algo que sempre tentava escapar, dizendo a si mesmo – Você é também um clichê, você é daqueles que se acham diferentes ou especiais, mas você não é, vocês não são, nós não somos. Para nosso azar e maldição, estamos sim encaixados em um padrão, em vários deles, aliás.
Ela disse qualquer outra coisa que ele não ouviu, mas ergueu-se pra que ela se movesse e mudasse de posição sobre a cama. Ela sentou-se novamente com as costas contra os travesseiros, e apontou um quadro no alto da parede. O quadro havia sido pintado por ele, há muitos anos, e ela fez um elogio. Ele, agora com a cabeça deitada entre os pés dela, olhou a pintura e sorriu levemente, aquele desenho parecia não ter mais nada de familiar.
Este clichê, esta categoria na qual se encontrava também poderia ter algo de bom, ele pensava. De certa forma, força a buscar sempre o novo, algo que você ainda não fez, ou algo que julga que não tenha sido feito. Mas esta constante busca por diferenciação, a eterna tentativa de fuga do óbvio também gerava naturalmente sua angústia. Termina por sempre gerar alguma cobrança, uma sensação de se estar desperdiçando algo de si mesmo, pois já que você identifica este mesmo gen que você leva dentro de si em pessoas que você considera brilhantes, que realizaram e tiveram o que você gostaria, você é novamente jogado ao maldito ciclo – sensação de injustiça,e pior: a identificação deste padrão em si mesmo e em outros conduz, nesta espiral diabólica, à esperança não admitida de que ainda terá sua chance, ainda vai brilhar, ainda vai ser salvo, ainda vai ter paz de espírito, porque outros já o tiveram.
Ele ouve um trovão distante, e levanta-se da cama. Pega seu maço de cigarros sobre o criado mudo, acende um e vai até a janela uma outra vez. O céu não parece mais tão púrpura, assumiu agora um tom mais acinzentado, e ele já começa a sentir o cheiro da chuva que virá. Ela vira-se de bruços outra vez, apoiando-se sobre os cotovelos para ler o livro sobre o travesseiro. Ele a observa, esforçando-se para sentir qualquer coisa agradável. Sua cara de compenetrada, a franja de cabelos negros que cai por sobre metade da testa dela, a pele alva dos ombros, a linha perfeita que desce das costas até a cintura, para novamente ascender na bunda pequena e arredondada, riscada pela fina calcinha rosa de algodão. Ele se esforça pra se convencer de algo. De que era de fato algo agradável.
Toda essa merda que ele trazia dentro de si fazia com que ele colocasse a maioria das pessoas com as quais tinha contato em duas categorias.
As que o admiravam, e a sua eterna auto sabotagem o fazia julgá-las inferiores a ele, e por isso as desprezava, e por isso as odiava.
As que ele admirava, e a sua eterna auto sabotagem o fazia julgar-se inferior a elas, e por isso as invejava, e por isso as odiava.
Ele sabia, desde que a tinha conhecido, que ela tinha sido incluída na primeira categoria,e esta qualificação era o que determinava o tratamento que ele dispensava a ela. E era esta sensação que ele tentava evitar desde o momento em que a luz lhe pareceu clara demais. Voltou-se para a janela, o céu agora estava ainda mais escuro, jogou o toco de cigarro com força para tentar acertar a calçada do lado oposto da rua, mas a chuva que começava a cair pesadamente só permitiu que caísse sobre a calçada logo abaixo do parapeito, rolando pela sarjeta com a enxurrada que começava.
Ela já havia deixado o livro de lado, continuava deitada de bruços, com a cabeça sobre os braços cruzados. Ele deitou por cima dela, beijando-lhe o ombro, o pescoço, afastou os cabelos da nuca dela e viu uma pequena tatuagem, um sol estilizado, logo abaixo da linha onde termina o cabelo, que nunca havia notado antes. Continuou beijando as costas e foi descendo, beijo, língua, saliva, brilho, visco, até a cintura, ela começava a suspirar. O barulho da chuva parecia mais forte, o ar dentro do quarto parecia mais denso, e ele agora beijava a bunda dela, com os dedos percorrendo embaixo do algodão rosa da pequena calcinha, pele, tecido, odor seiva, e ela começava a gemer baixinho. Ficou de joelhos na ponta da cama, e com um movimento único puxou a calcinha, jogando pra trás sem olhar. Apertou a cintura dela, uma mão em cada lado, notando a marca rosada que a pressão dos dedos fazia na pele clara. Ergueu-a até ela apoiar os joelhos na cama, ela abriu-se, lilás,veludo, e ele começou a penetrá-la com cada vez mais força, som abafado, grito contido, visão turva, não mais percebia a luz, fazia parte agora da densa névoa que preenchia o quarto,e a última coisa que pôde ouvir, antes de deixar-se dominar pela lisergia que o ato lhe causava, foi o barulho de uma colisão de carros lá fora na rua.
Ela esticou o braço e abriu uma fresta na veneziana. Não moveu o corpo. Tateando, procurou o cigarro no pequeno criado mudo, sobre o qual estavam o rádio relógio, um abajur de lava verde, pequenos papéis, extratos de banco, meio copo de whisky com o gelo há muito derretido, um frasco plástico de calmantes, um frasco plástico de energéticos, um cinzeiro de metal azul, um celular, um mp3 player, uma pilha de livros já um tanto cobertos de pó, e nenhum maço de cigarros.
Sem olhar pra ela, ele ainda vasculhava algo mais na carteira, puxou a calça novamente, tirou um maço e o isqueiro de um dos bolsos da frente, levou o cigarro à boca, acendeu e estendeu-lhe a mão com o cigarro aceso entre os dedos, ainda sem olhar pra ela.
Tirou o cartão do banco da carteira, deixou sobre a ponta da cama ao lado do saquinho plástico, fechou a carteira, e hesitou por um segundo. Passou mão, devagar e firme, do peito ao ventre dela. Não pareceu satisfeito. Pegou sua camiseta do chão, e ainda sem olhar pra ela, lhe enxugou o colo, os seios e a barriga.
Ela levou um dos braços atrás da cabeça, e com o outro braço erguido segurando o cigarro, erguia também levemente seu queixo para soprar a fumaça que contribuía com o ar viciado e denso que preenchia o quarto.
Ele pegou o saquinho, e olhando-a nos olhos, despejou cuidadosamente o pó branco em uma linha que ia do umbigo até o meio das costelas, controlando a quantidade que caía com precisa alternância da pressão dos dedos. Ela encolheu a barriga e riu quase em silêncio com a fumaça do cigarro saindo de sua boca em velocidade desordenada. Tente não se mexer, ele disse, e com o cartão plástico perfilava a substância no sutil côncavo vertical no meio da barriga, enquanto ela travava os dentes e prendia o ar para não rir. Percorreu rapidamente o corpo dela com os olhos, voltou a cabeça para a beira da cama onde estava sentado, e num rápido movimento, agachou-se até sua carteira no chão, abriu, olhou o compartimento onde guardava o dinheiro, havia duas notas de dez e uma de dois, pensou por um instante, e pegou a de dois por lhe parecer a mais nova, embora isto fosse uma atitude pouco aceitável e nada inteligente. Deixou a carteira no chão, e de pé, olhou pra ela enquanto enrolava a nota com hábeis e rápidos movimentos de dedos. Pensou que aquela era uma bonita visão, embora também lhe causasse certo enfado. Abaixou-se sobre ela até ter seu rosto a meio palmo do vão dos seios, onde a pele parecia mais alva, e percorreu com a nota a linha que havia feito, e ela, que estava com o ar retido e com a barriga encolhida, não pôde evitar um suspiro que acabou por espalhar um pouco e fazer com que ficassem alguns resquícios dispersos sobre sua pele. Ele ergueu a cabeça, inspirou fundo e com força, e com as mãos apoiadas na cama, cada mão próxima a um dos flancos dela, olhou-a novamente, para novamente abaixar a cabeça e lamber verticalmente todo vestígio deixado, o que a fez soltar uma risada. Ele fez uma careta quando sentiu o gosto amargo, mas em seguida sua língua adormeceu e ele gostou de ter perdido o agridoce gosto de sexo que tinha na boca. Pousou a face contra o ventre dela por um instante, achou aquele gesto descabido, ela abaixou a mão para acariciar seus cabelos, mas antes que o tocasse, ele levantou e foi pegar o maço de cigarros. Pôs um no canto da boca, acendeu com uma só mão e jogou maço e isqueiro sobre a calça no chão. Passou por sobre as pernas dela até chegar ao outro lado da cama, onde se sentou tocando as costas na parede gelada, contraiu as espaldas até acostumar-se à temperatura, deu uma tragada e soltou a fumaça com um suspiro, recostando a cabeça.
Não quis pensar no desconforto da parede gelada, nem quis pensar no desconforto da situação, agora que os ânimos esfriavam; e não pensou no desconforto que o vento trazido pela persiana semi aberta causava no seu corpo semi nu. Não quis pensar em nada, até que viesse a lucidez esperada, que sempre vinha. Ela ainda fumava, embora agora já não o olhasse. Ela repousava a cabeça no travesseiro, com os olhos voltados para o teto, mas não olhava o teto propriamente, seu olhar o atravessava, seu olhar era como o olhar vítreo de algo recém morto.
Ele notou que suas mãos começavam a tremer, e sabia que não era pela parede, pela situação ou pelo vento, todos esses frios somados. Ainda se esforçava para evitar os pensamentos recorrentes.
Ele queria não sentir repulsa, ele queria não sentir remorso, ele queria não sentir ressaca, não a moral. Ele queria não sentir o desconforto de não querer estar onde se está, o onipresente desejo de ir embora, que nunca cessa. Mas ele sabia que viria.
Ele sabia que viria. Ele nunca sabe exatamente quando, a hora exata, mas sabe que sempre vem. Mesmo quando há os longos períodos de tempo sem vir, períodos de otimismo, entretenimento, negação, ou qualquer coisa assim, mesmo quando parecia que nunca mais voltaria, sempre houve algo no fundo que nunca se deixou convencer de que não viesse mais. Ele sabe exatamente a hora em que chega. Não há propriamente alguma mudança física, pelo menos não que ele consiga perceber, talvez seu olhar mude, talvez algum gesto seu se torne mais brando, mais sutil. A vera nuvem solitária, que troveja em sua cabeça como uma noite de ano-novo, o toque gelado e cadavérico de alguma deusa morta.
Às vezes com maior ou menor intensidade, às vezes mais ou menos fácil de abafar, postergar, dissimular, ou até aproveitar, mas sempre vem. E talvez sim, sempre virá. Às vezes ele fica grato, alguma vaidade sua aceita isso como parte ou fonte de qualquer brilho, às vezes só o faz sentir-se ridículo. Álcool, sexo, companhia, solidão, qualquer fuga, qualquer disfarce, qualquer placebo, nada evita, no máximo altera, transforma, mas sempre há o impacto, a estranheza, qualquer cortina cinzenta no olhar, qualquer cansaço nos gestos, qualquer peso no semblante, qualquer lucidez elaborada nos pensamentos.
Ela agora já apagou o cigarro, o cinzeiro de metal azul ainda solta fumaça, e apoiando-se com as duas mãos, ergue o tronco até recostar-se no travesseiro atrás dela, tirando suas pernas debaixo das pernas dele, porque já começavam a formigar. Não se conheciam há muito tempo, mas tampouco era sua primeira vez juntos, por isso ela sabia que freqüentemente, depois do sexo, ele ficava daquele jeito. E mesmo quando não era depois do sexo, às vezes ele era tomado daquilo, aquele jeito, e o melhor que ela podia fazer, isso já tinha aprendido, era não fazer perguntas demais, nem tentar conversar demais. Apesar de ser exatamente isso, esse jeito estranho e esse mistério intermitente o que mais a atraía nele, ele podia ficar agressivo, e não que houvesse qualquer violência física, mas as coisas que ele podia dizer eram tão desconcertantemente exatas e cruéis, que podiam causar mágoas difíceis de apagar. Levantou-se, pegou sua calcinha que estava no chão, em frente à porta do quarto, vestiu-a, olhou em volta, agachou sobre a calça dele, onde estavam a carteira, o saquinho, o cartão e a nota enrolada, levou-os ao criado mudo, abaixou-se e levantou em rápidos movimentos, pegou o copo de whisky e foi até a cozinha para enchê-lo novamente.
Ele a olhava em silêncio, e quando ficou sozinho no quarto, foi ao criado mudo, pois ela havia deixado para ele, e embora ele achasse que talvez fosse demais, enrolava rapidamente a nota enquanto abria a janela totalmente. Acendeu outro cigarro e apoiou os cotovelos sobre o parapeito. Ela voltou ao quarto com dois copos de whisky com gelo, e deu um a ele, que esforçou-se para assumir uma expressão quase cândida, com um meio sorriso na face, e beijou-a na testa, virando a cara logo em seguida. Ela sentou novamente na cama, e mesmo que não o olhasse, ele sabia que estava atenta a qualquer movimento seu, esperando o momento de voltarem a conversar.
Daquela janela do 14º andar, ele olhava os poucos carros que singravam a madrugada de céu púrpura, enquanto pensava no grande filho da puta que era, pois poderia mostrar um pouco mais de carinho pela garota deitada na cama, em silêncio, que notadamente gostava dele, mas em vez disso, ele obedecia a esta maldita síndrome ou sabe-se lá o quê que o fazia ser ríspido com qualquer pessoa que ousasse demonstrar afeto. Podia ter se virado e começado a conversar com ela, qualquer assunto ameno bastaria para ela, mas ao invés disso, continuou a olhar os carros, imaginando as pessoas dentro deles, sabendo que lhe viria à cabeça o que sempre vinha e viria, a ridícula e desnecessariamente perturbadora pergunta: “como conseguem?”.
E, como já não era mais assim tão jovem, e a puberdade já havia passado há uma década, pensar em coisas deste tipo não era nenhum questionamento saudável para a construção de uma personalidade, e sim um clichê recorrente, e exatamente a redundância desta expressão só servia para fazê-lo sentir-se mais ridículo e infantil.
De nada valeria pensar em que parte da sua vida ele escolheu ou foi levado a tomar este “caminho”, se é que houve algum divisor de águas, a sempre tomar distância de situações, acontecimentos, oportunidade ou crise, e analisar tudo, dividir, categorizar, comparar, sempre tentando encontrar padrões, e pateticamente sempre se esforçar ao máximo para não se ver completamente dentro de nenhum deles, nunca sentir, fugir sempre, querer ir embora, agora e sempre, agora.
Fechar-se cada vez mais, impondo aos outros testes, condições, provações, vestir-se de alguma aura qualquer, enclausurar-se em algum véu cada vez mais turvo, querendo que alguém o adivinhe, mas tornando isso mais difícil de acontecer, ano após ano. Embriagar-se em uma esperança romantizada, e nunca, nunca admitida, de que um dia será salvo, encontrado e resgatado por algo ou alguém que preencha os requisitos que cada vez mais aumentam e se tornam mais absurdos. E enquanto espera o impossível, seguir achando que não há ninguém que o mereça, porque toda esta lama que ele mesmo cria e se afunda lhe dá um sentimento oculto de superioridade – afinal, carregar tamanha maldição (mesmo que criada propositalmente) lhe confere um valor tão grande que não deve ser desperdiçado com qualquer um, seria dar pérolas aos porcos.
Ele abanou a cabeça, jogando o toco de cigarro com força para tentar acertar a calçada do lado oposto da rua, mas o vento que soprava só permitiu que caísse sobre a faixa dupla amarela do meio da pista. Voltou a olhar pra dentro do quarto, ela agora estava sentada sobre a cama, lendo um dos livros dele que estavam sobre o criado mudo. Era uma cena interessante, ela com Dostoiévski aberto no colo, e acima dela, na parede, diversos pequenos quadros, a capa de Abbey Road, a capa de Beggar´s Banket, Hemingway com um suéter de lã de marinheiros irlandeses, o quarto de Van Gogh, Ninfas e Sátiro de Bouguereau, Jeanne Moreau vestida de homem correndo em uma ponte. Esta visão, embora contivesse sua beleza, o fez pensar que ela não pertencia ao padrão das referências em volta dela. E como ele já estava tomado deste fluxo vicioso de pensamentos, reconheceu que esta era outra das partes dessa tal maldição. Além de manter-se inatingível, também colocava certas coisas, sonhos, objetos e pessoas em um patamar nunca possível de ser alcançado, por qualquer motivo ou obstáculo que houvesse ou fosse por ele próprio inventado. Mais um conflito ilógico ao qual se infligia, para gerar uma auto-sabotagem constante que justificava o apego à tristeza, à melancolia e ao tormento. Porque embora não houvesse sentido em todo este processo, ele acabava por torná-lo superior, mais sábio, mais sério, mais inteligente, uma vez que toda a constante observação e análise ampliavam a sua visão, e eram fruto dela.
Observá-la agora, sentada, nua, serena, talvez sem fazer idéia do que se passava pela cabeça dele - embora o respeitasse - fez com que ele sentisse maior essa distância que lhe permitia tais percepções. Voltou-se novamente à janela, pois lhe queimava esta inveja que, embora jamais assumisse por completo, sentia da alegria, simplicidade, e satisfações que as pessoas que ele considerava simplórias e ignorantes conseguiam obter. Ele não as conseguia, e era o que, ainda secretamente, mais almejava.
Debruçou-se mais sobre o parapeito, para sentir mais o vento no rosto, enquanto fechava os olhos com força e cerrava os dentes, pois sabia que era dessa inveja suprimida que vinha o ódio que o acompanhava há muito, a revolta que tornava cáustico o sangue nas veias, o sentimento de estar sempre sendo injustiçado, já que acreditava ser melhor, e mais merecedor do que estas outras pessoas. Tudo isso que era gerado dentro dele, aliado à Inteligência que ele indiscutivelmente tinha, ainda que limitada, fazia-o chegar à constatação de que de alguma forma entendia algo essencial sobre a vida, e que existia alguma lógica oculta nesta tal injustiça que sofria. Esta lógica era o que criava sua Inteligência e lhe dava sua visão, e os produtos desta lógica eram também o que o impedia de ter as coisas simples que queria, pois o impedia de ser simples como elas.
Todas essas dualidades que bailavam dentro dele geravam naturalmente uma escolha constante, e sua vaidade sempre o levava a escolher o lado mais sombrio, pois embora este lado tivesse menos benefícios práticos, tomar este caminho era o que lhe trazia o seu brilho, deste suposto brilho vinha o seu orgulho, e seu orgulho o mantinha neste eterno ciclo doentio.
Todas estas linhas de pensamento começavam a fazer doer sua cabeça, como se algo a pressionasse pelas frontes, e percebeu que apertava a mão que segurava o copo que agora só continha os restos do gelo que derretia. Pousou o copo sobre o criado mudo, pegou o pequeno saco plástico, o cartão e a nota enrolada, repetiu novamente a conhecida operação, debruçou-se sobre o móvel, ergueu a cabeça olhando para o teto e aspirando com força, e girando o tronco, de joelhos, projetou-se sobre ela mordendo sua coxa. Ela deu um grito, e com o susto suspendeu as duas pernas, ele apoiou suas mãos sobre as coxas dela abaixando-as novamente, e com este movimento ergueu a cabeça até beijá-la subitamente, para que a forma violenta e inesperada do carinho demonstrado conferisse mais valor ao gesto. Tudo isto aconteceu numa fração de segundo, e passado o susto inicial, ainda com as bocas coladas, ela riu e deu-lhe um tapa no ombro. Ele afastou a cabeça um pouco, olhou-a nos olhos, e sorriu brejeiramente. O sorriso dela se estreitou, e ela disse – Às vezes você me assusta um pouco. Ele já estava novamente de pé, com seu copo vazio na mão, e enquanto atravessava a porta saindo do quarto, respondeu – Talvez seja essa a intenção.
Atravessou a sala no escuro, tateando com a mão direita a parede que o levaria até a cozinha, acendeu a luz, colocou o copo na pia, seguiu até a área de serviço, entrou no pequeno banheiro que só usava em ocasiões específicas, abriu a minúscula janela, ajoelhou no chão sobre a privada, enfiou o dedo mínimo na goela uma, duas, três, quatro vezes até conseguir vomitar, fez força até que a ânsia passasse, enfiou o dedo mais uma vez, sentiu as tripas revolverem-se sem ter nada mais o que expulsar, aguardou alguns segundos, levantou-se e deu descarga. Enxaguou a boca repetidas vezes, lavou o rosto, e olhou seu rosto pálido e seus olhos vermelhos no espelho. A imagem já lhe era um tanto familiar, quase lhe causava algum prazer não confessado.
Hipnotizado pelo seu reflexo, reconheceu em seu próprio olhar uma expressão de reprovação, de saber que todos esses conflitos se faziam ainda mais ridículos por serem inúteis. Afinal, todas estas constatações de dubiedades só eram possíveis porque já existia, desde sempre, a capacidade de enxergar diferentes lados. Ou seja, o processo se invertia, já que esta tal visão era causadora dos conflitos, e não conseqüência deles. E isto tornava tudo inevitável, indiferente a qualquer questionamento. E era neste esclarecimento que residia o cerne da angústia, afinal, ser simplório, segundo a linha de pensamento que adotava, além de tornar possível conseguir as coisas que ele se obrigava a desdenhar, ainda parecia trazer paz de espírito, porque uma vez que se desconhece qualquer possibilidade de ser algo diferente, se está naturalmente livre da agonia de ficar analisando, comparando e sofrendo com escolhas.
Saiu do banheiro deixando a porta entreaberta, atravessou a área de serviço e deteve-se na cozinha. Olhou a garrafa de whisky em cima do balcão em frente à pia, e sentiu seu estômago se contorcer outra vez. Respirou fundo, colocou a garrafa em cima da pia, abriu o congelador, retirou a forma de gelo, torceu-a, deixou cair algumas pedras sobre a pia, guardou a forma de volta, colocou três pedras de gelo em cada copo, colocou o whisky até o líquido ficar um dedo acima das pedras. Despejou um pouco de água da torneira dentro do seu copo e foi caminhando pela sala escura, tateando com o cotovelo a parede que o guiaria de volta ao quarto. O ar ainda lhe parecia carregado, pesado, preenchido de algo. Ela agora estava deitada de bruços sobre a cama, lendo, balançando os pés verticalmente. Ele colocou os dois copos sobre o criado mudo, debruçou-se sobre o móvel mais uma vez, ergue-se e tomou um gole que lhe pareceu agressivo.
Deitou-se de lado no espaço que restava da cama, no vão das pernas dela, e repousou o rosto sobre suas nádegas. Ela fez qualquer comentário ao qual ele não ouviu, e respondeu com um grunhido. Sem mexer a cabeça, olhou pela janela e percebeu que dali podia ver a lua, que aparecia no único vão descoberto do céu carregado de nuvens. Era minguante, e lhe trouxe certa tranqüilidade saber que podia distinguir coisas assim, simples e antigas.
Pensou que, toda essa confusão que - inutilmente ou não – há muito tempo lhe perturbava a cabeça inúmeras vezes, se tornava mais odiosa através dos anos. Se no começo, digamos ao sair da infância, essa confusão talvez também o fizesse sentir-se diferente, especial de alguma forma, essa impressão foi se deteriorando com a idade, maturidade, ou simplesmente o passar do tempo. Ao longo da vida, ele foi descobrindo em outras pessoas, em livros, canções ou qualquer obra, e mesmo em gestos, elementos desta mesma confusão, e percebendo que talvez ele não fosse assim tão diferente porra nenhuma. E sim que este sentimento de deslocamento é parte deste padrão em que ele está incluído. Sim, era isso, e perceber isso também trazia o sentimento de ridículo, jogando-o de volta ao redemoinho caótico que em noites como essa ele se deixava consumir.
Tal constatação não lhe trazia nenhum conforto pela identificação, e sim, outra vez, repulsa. Porque percebia que era e fazia parte de algo que sempre tentava escapar, dizendo a si mesmo – Você é também um clichê, você é daqueles que se acham diferentes ou especiais, mas você não é, vocês não são, nós não somos. Para nosso azar e maldição, estamos sim encaixados em um padrão, em vários deles, aliás.
Ela disse qualquer outra coisa que ele não ouviu, mas ergueu-se pra que ela se movesse e mudasse de posição sobre a cama. Ela sentou-se novamente com as costas contra os travesseiros, e apontou um quadro no alto da parede. O quadro havia sido pintado por ele, há muitos anos, e ela fez um elogio. Ele, agora com a cabeça deitada entre os pés dela, olhou a pintura e sorriu levemente, aquele desenho parecia não ter mais nada de familiar.
Este clichê, esta categoria na qual se encontrava também poderia ter algo de bom, ele pensava. De certa forma, força a buscar sempre o novo, algo que você ainda não fez, ou algo que julga que não tenha sido feito. Mas esta constante busca por diferenciação, a eterna tentativa de fuga do óbvio também gerava naturalmente sua angústia. Termina por sempre gerar alguma cobrança, uma sensação de se estar desperdiçando algo de si mesmo, pois já que você identifica este mesmo gen que você leva dentro de si em pessoas que você considera brilhantes, que realizaram e tiveram o que você gostaria, você é novamente jogado ao maldito ciclo – sensação de injustiça,e pior: a identificação deste padrão em si mesmo e em outros conduz, nesta espiral diabólica, à esperança não admitida de que ainda terá sua chance, ainda vai brilhar, ainda vai ser salvo, ainda vai ter paz de espírito, porque outros já o tiveram.
Ele ouve um trovão distante, e levanta-se da cama. Pega seu maço de cigarros sobre o criado mudo, acende um e vai até a janela uma outra vez. O céu não parece mais tão púrpura, assumiu agora um tom mais acinzentado, e ele já começa a sentir o cheiro da chuva que virá. Ela vira-se de bruços outra vez, apoiando-se sobre os cotovelos para ler o livro sobre o travesseiro. Ele a observa, esforçando-se para sentir qualquer coisa agradável. Sua cara de compenetrada, a franja de cabelos negros que cai por sobre metade da testa dela, a pele alva dos ombros, a linha perfeita que desce das costas até a cintura, para novamente ascender na bunda pequena e arredondada, riscada pela fina calcinha rosa de algodão. Ele se esforça pra se convencer de algo. De que era de fato algo agradável.
Toda essa merda que ele trazia dentro de si fazia com que ele colocasse a maioria das pessoas com as quais tinha contato em duas categorias.
As que o admiravam, e a sua eterna auto sabotagem o fazia julgá-las inferiores a ele, e por isso as desprezava, e por isso as odiava.
As que ele admirava, e a sua eterna auto sabotagem o fazia julgar-se inferior a elas, e por isso as invejava, e por isso as odiava.
Ele sabia, desde que a tinha conhecido, que ela tinha sido incluída na primeira categoria,e esta qualificação era o que determinava o tratamento que ele dispensava a ela. E era esta sensação que ele tentava evitar desde o momento em que a luz lhe pareceu clara demais. Voltou-se para a janela, o céu agora estava ainda mais escuro, jogou o toco de cigarro com força para tentar acertar a calçada do lado oposto da rua, mas a chuva que começava a cair pesadamente só permitiu que caísse sobre a calçada logo abaixo do parapeito, rolando pela sarjeta com a enxurrada que começava.
Ela já havia deixado o livro de lado, continuava deitada de bruços, com a cabeça sobre os braços cruzados. Ele deitou por cima dela, beijando-lhe o ombro, o pescoço, afastou os cabelos da nuca dela e viu uma pequena tatuagem, um sol estilizado, logo abaixo da linha onde termina o cabelo, que nunca havia notado antes. Continuou beijando as costas e foi descendo, beijo, língua, saliva, brilho, visco, até a cintura, ela começava a suspirar. O barulho da chuva parecia mais forte, o ar dentro do quarto parecia mais denso, e ele agora beijava a bunda dela, com os dedos percorrendo embaixo do algodão rosa da pequena calcinha, pele, tecido, odor seiva, e ela começava a gemer baixinho. Ficou de joelhos na ponta da cama, e com um movimento único puxou a calcinha, jogando pra trás sem olhar. Apertou a cintura dela, uma mão em cada lado, notando a marca rosada que a pressão dos dedos fazia na pele clara. Ergueu-a até ela apoiar os joelhos na cama, ela abriu-se, lilás,veludo, e ele começou a penetrá-la com cada vez mais força, som abafado, grito contido, visão turva, não mais percebia a luz, fazia parte agora da densa névoa que preenchia o quarto,e a última coisa que pôde ouvir, antes de deixar-se dominar pela lisergia que o ato lhe causava, foi o barulho de uma colisão de carros lá fora na rua.
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