sexta-feira, 19 de março de 2010

Das compaixões à segunda vista

A sensação é a mesma. Não que seja confortável, nunca foi, mas é familiar. O copo na mão, a posição medida e dura de todos os dedos, a barriga encolhida, um pouco pela postura, um pouco pelo medo. Nada disso é espontâneo, nem o sorriso ou o cigarro, mas não chega a ser ensaiado, é apenas construído com cuidado. Ouvir atentamente às conversas, fingir que não, usar a voz mais grave, gravar o que interessa , fingir não ter pressa, fugir, até que ela apareça. Edgar está numa festa, e não percebe nada ainda, mal vê as pessoas em volta, mas a sensação, construída ou constatada, ainda é a mesma.
E ela vem, como uma oração. Tem em si algo de desespero, algo de salvação. Traz na mão um copo, bebe num gesto pausado, e Edgar sabe que já foi tomado. Edgar já a conhece, desde antes do que é capaz de se lembrar, já a viu com vários rostos, em vários lugares, de várias formas, com vários olhares, e nada importa, porque a sensação é sempre a mesma, e é por ela que ele espera todas as noites. Ela aparece em meio à multidão da festa, sorri pra ele, e Edgar reconhece aquele sorriso, e se reconforta, com o alívio de quem encontrou o que buscava sem saber exatamente o objeto de sua busca. O sorriso dela não é mero repuxar de músculos, é como uma volta ao lar.

Edgar caminha em direção a ela, sem pressa, porque sabe que agora que a encontrou tem todo o tempo do
HERE COME OLD FLATTOP, HE COME
GROOVING UP SLOWLY, HE GOT
JOO-JOO EYEBALL, HE ONE
HOLLY ROLLER, HE GOT
HAIR DOWN TO HIS KNEE, a mão pesadamente refaz o gesto condicionado e interrompe os Beatles, desligando o despertador. Edgar vira de lado na cama e estranha o quarto ainda escuro. Ainda não são sete horas da manhã e ele ainda não se acostumou com o horário de verão, que mudou há pouco tempo. Reúne forças e num suspiro atira o lençol para os pés. Se senta, os olhos ainda semicerrados e os pés descalços estranhando o contato do tapete. Suspira outra vez, hoje vai ser um bom dia, pensa imperativamente, hoje não vou me irritar, pensa com menos ordem que esperança, tudo vai dar certo. Levanta e abre a janela, o horizonte está lilás, e ele gosta.

Acende a luz do banheiro e tenta acostumar os olhos à claridade, lava o rosto, vai até a cozinha e liga a cafeteira preparada na noite anterior. Abre a porta da sacada para deixar entrar o ar frio, para no meio da sala e se alonga pra espantar o sono, pescoço, ombros, braços, pernas e coluna. Pega uma xícara de café e bebe rápido. O banho é denso e nebuloso, e apesar dos pensamentos ainda estarem confusos, Edgar tenta se lembrar do que precisa fazer hoje no trabalho. Escolhe a roupa sem muito critério, enquanto toma outra xícara de café, arruma o cabelo superficialmente, sem muito esmero, se olha no espelho uma última vez, resolve trocar de sapatos. Quando termina de se aprontar, para no meio do quarto, abaixa a cabeça e reza como sua mãe lhe ensinou há muito tempo, pede pra que tenha paciência e serenidade, e pra que tenha um bom dia no trabalho. Pega sua mochila e sai, deixando a casa ainda escura e silenciosa.

O elevador para no sétimo andar e Edgar quase pragueja mas se contém a tempo, sorri para a mulher que entra com duas crianças vestindo uniforme da escola. Quando a porta do elevador se abre novamente, Edgar diz bom dia num sussurro entre dentes, mal os olha , entra no carro e não consegue se decidir que música quer ouvir, coloca os óculos escuros, mesmo sem o sol ter aparecido por completo. Acena pro porteiro, ganha a rua e tenta conter sua vontade de acelerar demais.

O caminho é o mesmo de sempre, os faróis onde ele para são os mesmos de sempre, com os mesmos vendedores de balas e flanelas que penduram as embalagens plásticas com um bilhete dentro, deixando à vista as mesmas mensagens otimistas no retrovisor. Edgar as lê e concorda com elas o suficiente para sorrir para o vendedor, mas não o bastante para comprar as balas. O trecho da rodovia que ele precisa pegar porque trabalha longe está cheio de carros como sempre, e o trânsito para nos mesmos lugares.

E é nestes momentos, parado, preso no meio da longa fila de veículos, que Edgar observa o canteiro central da rodovia, longo e gramado. Observa algumas pessoas que passam correndo por este canteiro, vestindo moletom, bonés, tênis de corrida, alguns com fones de ouvido, e Edgar se pergunta por que razão escolheriam tal lugar para praticarem suas corridas matinais, um estreito corredor de grama entre duas grandes vias de asfalto com todas as suas pistas abarrotadas de carros e caminhões cuspindo monóxido de carbono direto para o pulmão arfante desses corredores. Depois pensa que, por menos sábia que seja esta contraditória escolha, um ato saudável em um ambiente tão pouco salutar, talvez não disponham de nenhum outro local adequado que seja mais perto de suas casas, e termina por sentir compaixão desses pobres atletas do meio fio.

O trânsito anda mais um pouco, mas logo em frente já há outra parada, é um acidente envolvendo uma garota num carro e um motoboy, mas parece não ser nada grave, não há ambulâncias nem gente caída, apenas uma das faixas da rodovia foi interditada pelos guardas de trânsito, e a lentidão é causada mais pelos motoristas que desaceleram interessados em ver detalhes da cena do que a pista a menos para trafegar. Edgar tenta passar sem dar atenção demasiada às pessoas que estão paradas em volta da moto caída, supostamente envolvidas no acidente, pois sabe que o que menos precisam é de mais um olhar curioso a lhes julgar, a ter pena de seu infortúnio ou a maldizer a situação.

O tráfego flui novamente, mas somente para parar de novo dali a alguns minutos, e desta vez Edgar nota um casal de quero-queros no meio do canteiro central, e se pergunta por que razão estas aves escolheriam tal lugar para fazerem seu ninho e botarem seus ovos, um lugar aparentemente tão inóspito. Depois pensa que, por menos sábia que essa escolha pareça aos seus olhos, talvez não tenham achado nenhum outro local mais adequado em meio ao concreto que se estende por quilômetros em volta, e por qualquer que seja a razão pela qual os pássaros se encontrem ali, termina por sentir compaixão dessas pobres aves sem habitat.

Mais uma vez o trânsito volta a andar, e desta vez parece que vai seguir sem outras paradas, no ritmo lento de uma manhã de um dia útil em São Paulo. Edgar abre mais o vidro do carro e aumenta o volume do rádio, quer cantar mas ainda não conhece bem a música que está tocando, é uma das que ele baixou há pouco tempo, pra conhecer. Está na faixa da esquerda e anda bem, desenvolve boa velocidade considerando o horário e lugar onde está. E é assim, mais um no fluxo de veículos que segue o ritmo que é permitido pelo volume de carros neste momento, que ele vê, ao seu lado, um cachorrinho assustado andando no canteiro central.

Como ele passa relativamente rápido, mal consegue ver o animalzinho, mas consegue perceber sua feição de desespero, as costas curvadas de medo, o rabo entre as pernas trêmulas, as orelhas baixas, o passo desencontrado entre os dois leitos de incessante movimento, o cãozinho anda rápido sem saber que direção seguir, e antes de perdê-lo de vista, Edgar nota ainda que está arrepiado o seu curto pêlo branco, ou melhor, que já fora branco, mas que agora é quase bege, caramelo, imundo de barro, sujo de rua e abandono, e quando o bichinho sai do campo de visão de seu retrovisor, Edgar já está quase sem ar, e um calafrio, gelado, lhe percorre da cabeça até a ponta dos pés quando pensa que o cachorro certamente morrerá atropelado se permanecer ali, e em menos de um segundo, ele tem tempo ainda de se dar conta de que é apenas um filhote. Edgar sente o sangue lhe faltar na face, e instantaneamente dá seta pra direita, ao mesmo tempo em que seu olhar se fixa no retrovisor direito e ele vai jogando seu carro em frente aos veículos das outras faixas, e mal ouvindo os barulhos agudos das freadas e as buzinas que guincham cada vez mais altas, em um coro caótico, consegue atravessar as três pistas da rodovia, até chegar à última, sobe o meio fio, para em cima da calçada, e sem pensar liga o pisca alerta, solta o cinto de segurança, tira a chave do contato, abre a porta e trava o alarme.

Sentindo a força lhe faltar nas pernas, Edgar estende a mão e vai pouco a pouco se colocando em frente aos carros que passam velozes, tentando olhar nos olhos dos motoristas para que sua expressão os convença a ter um pouco de compreensão e cordialidade, mesmo que não saibam por quê, e desse modo, correndo, desviando dos veículos que brecam bruscamente, consegue atravessar todas as pistas e chegar à parte gramada.

Quando enfim chega ao gramado, começa a correr no sentido contrário de onde estava vindo, dando o máximo de si, sem notar os olhares estarrecidos dos motoristas que passam velozes ao seu lado, a se perguntarem porque diabos aquele rapaz de camisa, calça e sapatos corre com tão desesperada feição naquele improvável lugar. O cachorrinho se volta para Edgar, ainda a alguns metros de alcançá-lo, e corre de encontro a ele, não como um animal de estimação corre para seu dono quando este chega em casa, mas de modo apenas instintivo, um filhote buscando a única possível salvação que seu raso raciocínio lhe permite avaliar. Edgar se ajoelha no chão de terra, pega o animalzinho e o pousa sobre suas coxas, sentindo em suas mãos o batimento acelerado de seu pequeno coração. Aperta o bicho contra o peito e permanece assim por alguns minutos, até que o cachorro e ele se acalmem.

Edgar se levanta, segurando o cachorro em um braço, e o filhote agora repousa a cabeça sobre seu ombro, e com a mão livre Edgar vai de novo abrindo caminho entre os automóveis que reduzem a velocidade, incrédulos com a cena com a qual se deparam. Chega à outra calçada, acomoda melhor o bicho em seu colo, e anda devagar pela rua perpendicular à rodovia, em meio ao olhar de estranheza de dois ou três transeuntes, até chegar ao fim do quarteirão. Ao chegar à esquina, dá numa pequenina praça, pequeno triângulo gramado, apenas um banco e três árvores, encruzilhada entre três ruas calmas, nem parece que a poucos metros há uma rodovia em pleno horário de pico.
Abaixa-se e coloca o cachorrinho no chão, que anda em círculos e começa a cheirar o gramado. Ainda tem os gestos assustados, treme a cada ruído mais alto da rua, olha tudo ao seu redor, e se seus pequenos olhos já não mostram o pânico que mostravam há pouco, ainda há neles um brilho de medo e desamparo.

Edgar suspira fundo, olha em volta e pondera. Não há nada em volta a não ser muros de fábricas. Gostaria de dar de comer ao cãozinho, gostaria mais ainda de levá-lo até sua casa e cuidar dele por toda a vida, olha sua cara de pêlos curtos e desgrenhados, que lhe dá uma aparência feia e ao mesmo tempo simpática. Mas sabe que não pode fazê-lo, já está atrasado pro trabalho, tem muito o que fazer hoje, e além do mais, mal para em casa, manter um animal, com sua rotina, seria crueldade. Afaga a cabeça do cão, atrás de suas orelhas, pensa que talvez tenha pulgas, mas não tira a mão tão logo. Olha em volta outra vez, resigna-se, e começa a andar de volta pra onde deixou seu carro. O cãozinho o segue, Edgar para, bate o pé no chão pra que ele se afaste, o cachorro se assusta e para, inclinando um pouco a cabeça e olhando pra ele. Edgar volta a andar e o cãozinho volta a segui-lo, Edgar fala alto, passa, vai cuidar da tua vida, o cãozinho para e fica olhando pra ele, abre a boca e deixa pender a língua. Edgar tenta andar outra vez, o cachorro volta a segui-lo, Edgar morde os lábios, bate o pé com força no chão, dá um tapa na anca do cãozinho, que com o golpe volta a andar com as costas curvadas e o rabo entre as pernas e começa se distanciar. Antes de virar a esquina, Edgar olha pra trás, e vê o filhote sentado embaixo da árvore, olhando pra ele. O cãozinho ergue as orelhas, Edgar respira fundo, dá as costas, volta a caminhar e vira a esquina. Anda até seu carro e toma novamente a rodovia.

Dirige sem pensar em nada por alguns quilômetros, até que um espasmo lhe sobe do estômago até a garganta e termina num gemido surdo, e soltando o ar, Edgar começa a chorar copiosamente, fecha os vidros, desliga o rádio, cerra o maxilar entre seu punho, as lágrimas lhe escorrem gordas pelo rosto até pingarem de seu queixo e molharem sua camisa, e ele geme alto e descompassado. Com uma mão ao volante, Edgar segue deste modo por mais alguns quilômetros, e mesmo sem conseguir conter seu choro, se esforça para que nenhum motorista que pare ao seu lado porventura perceba o que está acontecendo com ele.

A poucas quadras antes de chegar ao escritório onde trabalha, Edgar respira fundo, enxuga o rosto com as costas das mãos, e retoma sua compostura. Entra com o carro no mesmo prédio de todas as manhãs, desliga o motor e abre a porta, sorrindo para o manobrista. Passa pela porta automática, cumprimenta o porteiro, passa pela catraca, aperta o botão do elevador. Ele chega, Edgar segura a porta para uma senhora que está entrando, lhe diz bom dia sorrindo, e desce em seu andar. O cheiro do carpete do escritório é o mesmo. Sorridente, Edgar cumprimenta a recepcionista com um gracejo, chega até sua mesa, se senta e liga seu computador. Enquanto espera ele iniciar, olha pela janela, vê a paisagem de todos os dias, familiar. Apóia os cotovelos na mesa, junta as mãos fechadas sob o queixo, a posição medida e dura de todos os dedos. Encolhe a barriga, um pouco por postura, um pouco por medo. Por mais desconfortável que seja, a sensação ainda é a mesma.

sábado, 24 de outubro de 2009

Das respostas adormecidas

Percebo em ti o que deixei que de mim colhesse. Esse fim urgente, gente assim que parece que nunca aquiesce, pra quem tudo é desejo. Vejo em ti qualquer influência minha, com a ciência de que a gente deixa pelo caminho mais do que é consciente.

Fugi de ti sem certeza, sem ter já firmeza no passo da fuga, sem saber se era nunca ou cedo, cedendo ao medo.

Se sinto orgulho, se minto indignação ou admito alívio, não sei se tudo junto, num esperado encontro fortuito, pelo muito de mim que decifrou.

Cada frase certa talvez escondesse um sinal, um final pra tudo que de tão velho em mim se acomodou eterno, inferno de gente assim.

Todos os meus vícios, jeitos, danos, anos e anos de planos desfeitos, tudo o que eu talvez devesse te contar, o que eu nunca dissesse, o que o silêncio se encarregasse de explicar. Tudo o que estivesse pronto pra você entender, num encontro que eu não deixei acontecer.

Daqui, longe como eu quis, vejo o que de ti eu saberia aceitar, toda a beleza que eu vi na sua vigiada clareza, toda sua confusão, aflição desencontrada, nada que poderia me assustar.

Daqui, desse perto que eu fiz, ainda escolho a metade que você possa gostar.

sábado, 4 de julho de 2009

Dos passarinhos

Não é nem o espaço, que, agora escasso, me limita. Ou essa vida de agora, que imita vida, que vai embora, que aumenta dúvida, que irrita, que se demora. A falta que me faz o céu de todos os dias, a paz vespertina das esquinas, o silêncio repentino das madrugadas. Ou o boa noite calado pras luas de todas as noites, a calma que me cobria de veludo, não é a falta disso tudo o que me rasga. Nem o convívio com toda essa gente, esses comportamentos condicionados, se sabendo vigiados. O perigo do olhar insuspeito vindo da janela, o barulho do vizinho.

O que me dá mais saudade de morar em casa é ter um passarinho. Um canário, real ou da terra. Quando ele canta quando acha que ninguém está perto. Aquele trinado longo, que fura o dia, que assusta e preenche, que vira silêncio quando não mais surpreende. Eu tive canários a minha vida inteira, e um deles inclusive acostumou-se a cantar enquanto eu tocava violão embaixo de sua gaiola.

A rotina de limpar a gaiola. Tirar a gaveta que serve de chão da pequena jaula. Trocar diariamente a folha de jornal, colocando uma folha nova, cortada e dobrada da maneira que aprendi com meu pai, processo exato, ritual silencioso. Tirar a gaveta lateral, estreita, coberta com uma fina tira de madeira com buracos redondos e largos, para o pássaro comer o alpiste dentro dela. Assoprar levemente as cascas deixadas, colocar o jiló cortado ao meio num canto, trocar a água da tigelinha, prender o almeirão em cima, quebrando-lhe o talo entre as grades da gaiola. E ver o bichinho feliz, ou ainda, ser capaz de enxergar-lhe a felicidade, batendo as asinhas sobre a água fresca. Ver o bichinho encolhido de noite, imóvel sobre o poleiro mais alto, mas com os olhos sempre atentos. Aquelas duas bolinhas pretas, brilhantes e pequenininhas, te olhando e mexendo a cabeça de modo curioso, olhar ao mesmo tempo fixo e alheio, à sua maneira profundo, parece que sempre estranhando este feio e furioso mundo.

Eu me lembro de um dia em especial. Um churrasco, à tarde, num apartamento, amigos se apertando num domingo lento. Eu sempre fico um pouco alheio em festas, perdido em tudo, fingindo algo, preenchendo com álcool o que me falta. A festa já se adiantava quando eu ouvi um canto de canarinho, perto, tão próximo que só poderia ter vindo de dentro do lugar. Fui andando pelo apartamento, atravessei alguns cômodos, até chegar no último quarto, que tinha uma sacada. Na parede desta sacada havia uma gaiola pendurada. Era um canarinho da terra, verde escuro, com manchas quase negras, penas desgrenhadas no topo de sua cabeça indicando a recente muda de fins da quaresma. Cantava sozinho, talvez pra rua lá embaixo, talvez pro trecho de céu que era possível ver entre os prédios em frente, ou somente o fazia de si para si. Fiquei observando um tempo, encostado à parede, tentando fazer com que ele não notasse minha presença. Eu havia aprendido, anos antes, a brincar de falar com eles, os canários. Um assobio em três partes, grave, agudo, grave, curto e rápido. Eu assobiei sabendo o que ia acontecer. Assim que me ouviu, o pássaro cessou seu canto, alerta, ainda sem me ver. Andando devagar, sem gestos bruscos, me pus em frente a ele. Deixei que ele me olhasse por alguns instantes. Ele pulava entre os dois poleiros da gaiola, me avaliando. Não ousei erguer as mãos, nem me aproximar demais. Assobiei outra vez. Ele agora me observava imóvel.

Passarinhos são desconfiados. Também acham estranho toda essa gente. Demoram, ou nunca baixam a guarda. Por isso, sei que tem que insistir. Recostei-me de lado na parede, mantendo certa distância, assobiando com pausas regulares. No começo, ele olhava e virava a cabeça, estranhando. Com o tempo (uns 10 minutos assobiando), ele entendeu. E começou aos poucos. Assobiando uma nota apenas, curta e rápida. Comecei a imitá-lo, esforçando-me, da maneira que é possível um ser humano imitar um passarinho. Aos poucos, fui adaptando meu assovio ao dele, e gradativamente tornando-o mais longo para que ele me seguisse. E assim, nos sincronizamos. Eu assobiava, fufí-fiu, e ele respondia igualzinho. Calei-me satisfeito, e ele, para me presentear ou para deixar claro quem era o melhor, voltou a cantar como fazia antes de eu perturbá-lo, um trinado longo furando o dia, preenchendo algo que talvez faltasse.

Quando me virei, ela estava na porta, me olhando e sorrindo com um sorriso que nunca tinha visto nela. “Acho que foi uma das coisas mais bonitas que eu já vi” - ela me disse. Eu sorri, e olhando pra ela ali parada, pensei a mesma coisa. Eu não sabia que seria uma das últimas vezes que eu a veria.

Todos esses anos depois, o que eu tenho mais saudade é dos passarinhos.

sábado, 25 de abril de 2009

Das coisas que passaremos a vida sem dizer

“Se os peixes não vierem, pouco importa. Não busco os peixes que chegam alarmados à terra dos homens. Busco uma luz desmedida que me aquiete”
(Paulo Mendes Campos)

Não é silêncio o que se faz naquela sala de aula. Antes, uma redução do barulho habitual. Ainda assim, para aqueles alunos, isso é o máximo de solenidade que estão acostumados a conceder. O pequeno Edgar, sentado na antepenúltima carteira da penúltima fileira antes da parede da janela, está com os dois braços apoiados na mesa puída, cor verde-água desbotado. Observa as pichações feitas à caneta sobre o tampo, ele também contribui com algumas, ofensas gratuitas ao pessoal do turno da manhã, e suas respectivas respostas. Há um pequeno buraco no canto superior direito da mesa, onde se vê as camadas do compensado do qual o móvel é feito. O pequeno Edgar tem a cabeça baixa e olha a capa do seu fichário, sem pensar que usa um fichário não porque quer, mas porque, já há uns dois anos, todos os outros meninos começaram a usar, e como ele ainda não tem sua personalidade definida, tudo o que faz é tentar seguir os modelos que tem, os meninos mais fortes, os meninos que são melhores no futebol, os meninos que já fazem piadinhas maliciosas para as meninas e já tentam qualquer coisa. Olha para a capa do seu fichário, sem saber que o símbolo que ele olha chama-se ying yang. Sabe só que aquele símbolo é usado pela marca Town& Country, e as roupas dessa marca são usadas pelos seus primos mais velhos, e como ele ainda não tem seu próprio gosto definido, tudo o que faz é seguir seus primos mais velhos, embora rechaçado e hostilizado por eles.

O pequeno Edgar está inquieto, esperando os minutos restantes para a aula terminar, e fica olhando seu relógio Champion, modelo que escolheu porque um outro primo seu tinha um igual. Pediu um daquele para seus pais, presente de aniversário, achava que já era crescido o suficiente pra ter um relógio. Todos os seus primos mais velhos usavam, os chamavam de “cebolão”, eram os anos noventa. Sempre se lembrará do dia em que o ganhou. Dezenove de maio de 1992. Sábado. Acordou um pouco mais cedo do que de costume, ansiedade. Os sábados de manhã eram ótimos naqueles tempos. Quando ele acordava, o pai já tinha ido comprar pão e mortadela, trazia também o jornal. O pai fazia, todo sábado, suco de laranja no espremedor elétrico que tinha sido presente de casamento. O cheiro era bom na cozinha, e o sol entrava pela janela em frente a pia, a luz era bonita, e a mãe dormia até mais tarde aos sábados. Todo sábado de manhã era igual, e sempre era bom. O pai com cara de banho tomado, a mãe com cara de quem havia acabado de acordar, e o irmão ainda dormindo. Sempre se lembrará de ter entrado no ônibus sem saber onde se segurar, naqueles tempos ainda se entrava nos ônibus pela porta de trás. Entrara antes que o pai, o pai sempre o colocava na frente em situações assim. A carteira de couro puído se abrindo, os dedos grossos e avermelhados do pai dando o dinheiro para o cobrador (o pai havia lhe ensinado como guardar as notas na carteira, organizando-as de forma crescente de acordo com seu valor, e Edgar sempre se lembraria disso, embora só viesse a usar uma carteira anos mais tarde), o trajeto até o centro da cidade, que naqueles tempos, parecia enorme. O pequeno Edgar se espichava no banco para ver tudo pela janela daquele ônibus, linha T15 – Jardim do Estádio. O pai falava pra ele não encostar o rosto no vidro, era sujo. O pequeno Edgar não sabia por que era sujo aquele vidro, mas naqueles tempos sempre obedecia à voz grave do pai. Observava tudo pelo caminho, todos os tons de cinza das diferentes calçadas, todas as formas de folhas das árvores, todas as expressões das pessoas lá fora, todos os modelos de carro que cruzavam. Descer do ônibus era sempre o momento mais divertido, o desafio do pequeno Edgar era pular todos os três degraus de uma vez, passando pela linha da sarjeta, e pisando firmemente com os dois pés na calçada. Conseguiu fazê-lo perfeitamente naquele dia, e ao mesmo tempo em que ouvia o “Vai cair aí!” do pai, sentiu que já era velho demais para aquela brincadeira.

Sempre se lembrará que caminhava maravilhado, ainda que sem demonstrar, por entre a multidão que preenchia o calçadão da Oliveira Lima, naquele tempo ainda descoberto. Dezenas de pessoas indo e vindo, sacolas e caixas na mão, os pregões dos lojistas, os artesanatos sobre os panos estendidos no chão, e, claro, sempre havia o homem louco, com seu blazer azul marinho desbotado, que passava o dia cantando músicas do Roberto Carlos a plenos pulmões, ignorando os transeuntes. Era difícil e perigoso para uma criança caminhar ali, mas o pequeno Edgar não dava as mãos para o pai. Tinha vergonha de andar de mãos dadas naquela idade, ainda mais com um homem, e sabia que o pai também não se sentia confortável, embora nunca o tivesse dito, nem se negaria a fazê-lo se fosse necessário. A saída, encontrada anos antes, e já instituída como um código nunca dito entre eles, era que o pequeno Edgar segurava no prendedor da cintura da calça jeans do pai, o que naquela época era chamado de cós. Agarrava firmemente com o dedo indicador naquela pequena tira de pano grosso, e assim podia caminhar livremente, a alguns passos atrás, sendo guiado pelo pai. Podia observar tudo, despreocupado, pois tinha a segurança de que sua distração não o faria se perder.

Sempre se lembrará de que, como era costume do pai, entraram em todas as lojas possíveis, pesquisando os preços. Quando, já no começo da tarde, o pai enfim se decidira, voltaram à pequena loja da galeria, e o pequeno Edgar saiu dela já com o relógio no pulso, feliz e orgulhoso, mesmo o cebolão sendo grande demais para seu pequenino braço de dez anos de idade. Também se lembrará que, ao ganharem a rua novamente, o pequeno Edgar abraçou o pai desajeitadamente, sem interromperem o passo, apenas passando o braço pelas costas dele e dando leves tapinhas, distância aceitável para um abraço entre homens. O pai, também sem jeito, desfez um pouco o semblante cerrado, e respondeu com seu grunhido peculiar, que significava, ao mesmo tempo, “De nada” e “ Moleque folgado”: Heh.

Mas o pequeno Edgar não se lembra disso agora, enquanto mantém os olhos nos ponteiros e bate os pés no chão, esperando tocar o sinal da saída. Ouve já alguns barulhos na quadra ao fundo da escola, os sons surdos dos chutes na bola, os sons agudos das solas dos tênis sobre o concreto liso, e se pergunta quem será que já terá sido dispensado e já está lá. Olha em volta, e seus amigos têm a mesma expressão ansiosa que ele. Quando enfim ouvem o berro longo e estridente do sinal, levantam-se rapidamente, caminham por entre as fileiras, se despedem do professor com joviais e ainda educadas expressões, e se misturam à massa barulhenta que inunda o corredor e as escadas.

Quinze meninos chegam à quadra esburacada atrás do prédio da escola pública. E, como o manda o senso de justiça deles, os três melhores tiram dois ou um para ver quem começa a escolher os integrantes de seus times. O número de meninos permite formar três times, um time sempre ficando de próximo. O pequeno Edgar joga mal, é um dos piores, todos sabem disso, ele sabe disso, e sabe que por isso sempre é um dos últimos a ser escolhido. Resta a ele o conforto de saber que nunca é o último de todos, porque apesar dele ser ruim, um dos melhores jogadores da escola é também um de seus melhores amigos, e por isso acaba escolhendo o pequeno Edgar não por critério, mas por consideração.

O pequeno Edgar se esforça, corre o tempo todo, grita, tenta coordenar as jogadas, mas perde a bola, chuta torto, e de vez em quando a sorte lhe presenteia e ele acerta um cruzamento que resulta num gol, e de vez em quando algum dos colegas o presenteia e lhe dá um passe para que ele faça um gol, quando os zagueiros e o goleiro já estão vencidos.

Jogam por umas duas horas, revezando os times, até que escureça, e voltam pra casa sujos, suados e satisfeitos, com um orgulho qualquer que sentem mas não percebem a lhes estufarem os peitos.

Naqueles tempos, chegar em casa no fim da tarde era sempre bom. O cheiro da janta sendo feita era sentido já no portão, e ao atravessar o quintal, ia já ouvindo as vozes da mãe e da vó que conversavam na cozinha. E então era o banho, a janta e os desenhos na TV, a novela com a mãe esperando o pai chegar, o barulho do portão abrindo e a cachorra latindo quando o pai chegava em casa, os gibis no quarto até a hora de dormir. Todo fim de dia de semana era igual, e era sempre bom.

Naquele dia, era sexta feira, e o pequeno Edgar se demorava mais do que o costume em frente à TV, e sempre se lembrará de como o pai entrou pela sala, hesitou por alguns segundos e disse, como em algumas outras vezes: “Tá a fim de pescar amanhã?”. Naqueles tempos, ele sempre dizia que sim, mesmo sem saber porquê. “Quem mais vai?”, perguntou ao pai, porque sempre iam alguns amigos do bar junto. “Vou sozinho. Matar peixe”. “Tá.”, respondeu, e se sentiu um pouco mais alegre, porque nunca tinha ido pescar sozinho com o pai, sem a companhia de mais alguém. “Vai dormir. Amanhã saímos antes das cinco”, o pai finalizou, enquanto saía pra garagem para arrumar os apetrechos da pescaria.

Acordou antes que o chamassem, ao ouvir os primeiros ruídos na casa, ansiedade. Levantou-se da cama e, no escuro, pegou a muda de roupas que a mãe preparara na véspera, saiu do quarto tentando não fazer barulho pra não acordar o irmão que dormia na cama ao lado da sua. Encontrou o pai na cozinha enchendo o isopor de gelo e latas de cerveja, e a mãe sentada na cadeira com um dos cotovelos apoiados na mesa, a cabeça apoiada sobre a mão, dando palpites com voz de sono, despenteada e com uma expressão de enfado.

Sempre se lembrará da Brasília cor de vinho, cuja placa era UG 2018. Naqueles tempos, as placas dos carros ainda eram amarelas, e tinham somente duas letras antes dos números. Saíram com o dia ainda escuro, as varas entre eles, dividindo o espaço do painel até o vidro traseiro do carro, e os apetrechos no porta-malas fazendo barulho nas curvas.

O ritual era sempre o mesmo. O café na padaria, já no Riacho Grande, onde também compravam os lanches que serviriam de almoço. O café com leite e o pão na chapa enquanto viam o dia amanhecer. Tentar para o carro na sombra, e andar no mato molhado até encontrarem um lugar isolado. O pai deixava o pequeno Edgar carregar a caixa dos apetrechos, enquanto levava o isopor, a mochila e as varas. Quando enfim o pai achava um lugar satisfatório, colocava o isopor e a mochila mais afastados, à sombra de alguma árvore. Ainda distante da água, onde a grama terminava, desamarrava as tiras de borracha que prendiam as varas, preparava os chicotes e as chumbadas, colocava os anzóis, instalava os molinetes, com uma calma que exasperava o menino. Aprontava antes a vara do filho, sempre o colocava na frente em situações assim. Procurava algum toco grosso e curvo, e quando o encontrava, entrava na água até a altura das canelas, fincava o toco firmemente na areia grossa da margem, e nele pendurava o samburá, que ficava quase todo submerso, balançando ao sabor da correnteza. Fazia isso para que os peixes que pegasse pudessem ficar vivos durante toda a pescaria, pelo menos era o que o menino imaginava.

Preparava as duas latas de iscas, que podiam ser minhocas, vermes (cujo cheiro causava náusea ao pequeno Edgar) ou ração. Colocava uma lata no bolso, ou a prendia na cintura, ou podia até mesmo deixá-las na areia, desde que não ficasse exposta ao sol. Este mesmo processo variável era também aplicado ao seu pequeno radinho de pilha, que tocava (volume baixo para não espantar os peixes) coisas que o pequeno Edgar ainda não conhecia naqueles tempos. Cartola. Adoniran Barbosa. Altemar Dutra. Deep Purple. Rolling Stones. Raul Seixas. “O Samba pede passagem.”

Com tudo já pronto, o pequeno Edgar escolhia o lugar onde ficaria, quase sempre cerca de quinze metros distante do pai, para não atrapalhar, nem ser atrapalhado. O pai então abria a primeira lata de cerveja, e soltava um suspiro grosso e satisfeito após o primeiro gole. Lançava a linha à água, recolhia, e ficava quase imóvel, com uma expressão ao mesmo tempo concentrada e serena. O vento gelado matinal passava por seus cabelos negros e lisos, o ar tinha cheiro agridoce, característico, do qual Edgar nunca se esquecerá, cheiro de represa, relva úmida, o restante da branca névoa noturna ainda se demorando a dissipar. O pai agora era parte da paisagem, a compunha, junto com o sussurro constante da água corrente que se misturava aos diferentes cantos dos passarinhos seus cantos de amanhecer. E então seu rosto assumia uma feição de satisfação, tão sutil que somente a um filho era possível perceber.

O pequeno Edgar já sabia o que fazer, tinha aprendido anos antes. Observava todo o leito da represa. Haveria alguma faixa da água que seria mais escura, e que pareceria correr mais rápido. Ali era o canal. Onde os peixes maiores nadavam. Era ali que o anzol deveria ficar. Se esforçava para recordar todos os passos. Segurava a vara firmemente, a mão esquerda embaixo, a mão direita em cima, com seu pequeno dedo indicador prendendo a linha e mantendo levantada a fina trava do molinete. Com as mãos fixas dessa forma, erguia a vara por cima do ombro direito, o peso do chumbo pendendo por trás de suas costas, e o lançava, com força controlada, num semicírculo por cima de sua cabeça, afrouxando o dedo para que a linha corresse livre até que o chumbo caísse no lugar desejado, no meio do canal. Deixava afundar um pouco e descia a trava, interrompendo a queda. Girando a pequena manivela do lado direito do molinete, recolhia a linha até que ficasse suficientemente esticada para poder perceber qualquer movimento do anzol. Fixava o olhar na pequenina bóia branca com litras vermelhas sobre a superfície da água. Às vezes mantinha o olhar tão fixo que a visão se embaralhava, parecia que a água marrom parava de correr, e ele é que se movia. Quando isso acontecia, ficava tonto, piscava forte e sacudia a cabeça para voltar ao normal. Ficava tentando imaginar o anzol com a isca ali, naquele mundo escuro do fundo da represa, com os peixes passando em volta, intrigados com aquele pequeno alimento boiando gratuitamente em seu percurso, dádiva insuspeita.

O pai sempre pescava dois ou três peixes antes que ele, e o pequeno Edgar não percebia que isso talvez fosse a natureza tentando lhe ensinar qualquer coisa sobre a hierarquia da vida. O pai dava um tranco brusco, puxando a vara para si num solavanco e girando rapidamente a manivela do molinete, o barulho repentino que a água fazia tirava o menino de sua concentração, e ele observava, orgulhoso e atento, a forma como o pai manejava a linha para prender o peixe de vez, trazendo-o para a superfície. Divertia-se quando o pai, já certo que vencera o duelo, ria brejeiramente ou soltava um assovio alto imitando um bem-te-vi, e enfim soltava o peixe do anzol para medi-lo e colocá-lo no samburá. Então o pai relaxava os ombros, caminhava até onde a grama começava, para repor a isca e buscar outra cerveja, fazia qualquer comentário, ou cantava um trecho de alguma canção, olhava ao redor e voltava para a beira d’água. O pequeno Edgar então se sentia desafiado, esforçava-se para pescar algo, mudava estratégias, embora sua inquietude o fizesse mover demais a vara e a linha, e perdia a isca em poucos minutos, tendo que repô-la constantemente.

Quando enfim a sorte lhe presenteava com alguma fisgada certeira, o menino era tomado de êxtase, tentava dominar-se para fazer tudo da maneira correta, o pai gritava alguns poucos conselhos do lugar onde estava. Tirava o peixe da água (sempre eram menores que os do pai), e deixava-o pendurado ao anzol por alguns instantes, saboreando aquela alegria. Ficava tão imerso neste momento, que nunca pôde ver o olhar orgulhoso do pai, mirando o filho desajeitado, contente de seu próprio esforço e recompensa.

O pequeno Edgar tinha medo de soltar o peixe do anzol, embora o pai o tivesse ensinado anos antes. Colocá-lo na palma da mão, e, baixando os dedos, prender-lhe a barbatana para que não se sacudisse. Dessa forma, o peixe se manteria imóvel, para que se pudesse soltar o anzol de sua boca e colocá-lo no samburá. Conseguia fazê-lo amiúde, mas muitas vezes o menino aceitava sua incapacidade e recorria ao pai, que fazia esta parte do processo, não sem antes reclamar qualquer coisa.

O menino enfadava-se logo, e o pai, mesmo que dissesse qualquer frase em desaprovação, sabia que seria assim. O pequeno Edgar então saía a caminhar pela relva, observando alguns lixos sobre a margem, resíduos de pescadores anteriores. Olhava os peixes no samburá, brincava na beira da água, debaixo das broncas do pai que sempre dizia que com represa não se brinca, que há que se respeitar a represa, e mesmo que naqueles tempos ainda não entendesse o porquê, disso também Edgar sempre se lembrará.

Às vezes o pai demorava a pescar alguma coisa. Houve também os dias em que não pescavam quase nada, e inclusive houve dias em que nenhum peixe saiu da água. O pai nunca se importou com isso. “Peixe é detalhe”, ele dizia ao menino, que, naqueles tempos, não compreendia como isso poderia ser possível numa pescaria.

“Peixe é detalhe.” Edgar nunca se esqueceria desta frase, embora tenha levado duas décadas para ele entender seu real sentido. No princípio de sua vida adulta, aos vinte e poucos anos, quando sua personalidade enfim se definia, Edgar, que sempre lera muito, encontrou num livro uma frase que traduzia e catalisava este conceito: “Se os peixes não vierem, pouco importa. Não busco os peixes que chegam alarmados à terra dos homens. Busco uma luz desmedida que me aquiete”. Edgar, impressionado e identificando-se com aquilo, anotou a frase num pedaço de papel e o deixou na prateleira da estante da sala onde o pai guardava seus objetos pessoais. Também nunca se esquecerá de quando dias mais tarde o pai irrompeu em seu quarto tarde da noite, ligeiramente ébrio, e comentou a frase. “Uma luz desmedida que me aquiete”, repetia, talvez sem saber que essa busca, desesperadora e vã, também tinha sido incorporada pelo filho.

Mas naquele dia em especial, o pequeno Edgar não pescara nada. No começo da tarde, já havia abandonado a vara e quedava-se sentado à sombra de uma árvore, protegendo-se do sol a pino, divertindo-se com um gatinho vadio que aparecera por ali e observando o pai de longe, no mesmo lugar desde o princípio do dia, à margem da represa com água até as canelas, com o samburá já mais cheio.

Sem que o pequeno Edgar se desse conta, o pai enfim deu a pesca por terminada. Puxou toda a linha, agarrou o samburá e caminhou até onde estavam a mochila e a caixa dos apetrechos, perto do menino. Abriu o isopor, abriu outra lata de cerveja, e sentou-se na grama. Bebeu um gole, olhou pra água por alguns instantes, colocou a cerveja no chão. Abriu a mochila calmamente, tirou dela uma pequena pilha de jornal, separou uma folha, abriu-a e estendeu no chão fofo. Tirou uma tábua de cortar alimentos, de plástico branco, e a colocou sobre a folha estendida. O pequeno Edgar agora olhava atento e calado para o pai. Sem demonstrar nenhuma pressa, o pai retirou da mochila uma faca grande e de cabo prateado, embrulhada num papel grosso, um pequeno vidro contendo um líquido preto, e um outro vidro menor e mais arredondado, contendo finas fatias de gengibre em conserva, e um pequeno prato de plástico duro verde escuro. Dispôs tudo ao redor do jornal, puxou o samburá pra perto de si, hesitou por um segundo, e aumentou um pouco o volume de seu radinho de pilha. “Isso é Pink Floyd”, disse para o filho, embora sem olhar pra ele. O pequeno Edgar, agora já completamente tomado, sentava-se perto do pai e o observava em silêncio. O pai tirou um peixe do samburá, que ainda se debatia, colocou-o sobre a tábua, segurando-o firme, e com a outra mão segurando a faca, decepou-lhe a cabeça praticamente num só movimento, fazendo-o a cair um pouco longe, sobre a grama. O pequeno Edgar emitiu um gemido surdo, enquanto o pai, com cortes precisos, cortava o peixe pela barriga, longitudinalmente, e retirou-lhe as vísceras com a ponta da faca. Cortou-lhe enfim a cauda, e depois, manejando a faca habilmente com o polegar e o indicador, retirou-lhe a pele e finalizou o corte fazendo dois filés, que depositou sobre o prato. Fez isso com todos os peixes, que eram uns cinco ou seis. Juntou todas as vísceras, cabeças, caudas e peles que sobraram, e deixou ao pé da árvore, para que o pequeno gato, que olhava atento para tudo, se fartasse. O pequeno Edgar estranhou que um gato pudesse gostar daquilo, mas o pai o tranqüilizou dizendo que para o animal, aquilo era um banquete. Sentado novamente, o pai cortou todos os filés em pequenos pedaços. Abriu o pequeno pote de vidro e jogou algumas fatias de gengibre. Terminou jogando por sobre tudo aquele líquido preto, que o pequeno Edgar perguntou o que era. “Shoyu”, disse o pai, enquanto abria a mochila novamente para pegar dois garfos. Deu um deles ao menino, que assombrado, perguntou: “A gente vai comer peixe cru?”. O pai riu, espetou um pedaço de peixe e uma fatia de gengibre com o garfo, esfregou no molho no fundo do prato, e de boca cheia, riu dizendo: “Você não sabe nada.”

Edgar sempre se lembrará disso. Mesmo quando, dezessete anos mais tarde, estiver sentado numa mesa de um restaurante japonês, junto com seus colegas de trabalho, no horário de almoço de uma terça-feira. E quando o garçom chegar trazendo uma bandeja cheia de muitas variedades de sushi e pequenos filés de vários tipos de peixe. E quando um dos colegas apontar para uma das pequenas filas de filés de peixe cru e perguntar que tipo de peixe será aquele, Edgar, inadvertidamente, terá seu olhar perdido, lembrando-se daquele dia. E quando um dos seus colegas, ao notar um sorriso sutil e meio bobo no rosto de Edgar, lhe perguntará:
- O que foi?
Edgar voltará seu olhar para ele por um segundo, para logo depois deixar-se perder novamente, voltando a sorrir enquanto responde:
- Nada.

De tudo que nunca é dito

Aí eu não sei o que pensar, nem se quero pensar. Mas na real, não tem como não pensar, sabe? Porque se surge a dúvida se quero ou devo pensar ou não, é porque rolou algum impacto. Sabe? Mesmo que finja ou me force que não, pra chegar nesse ponto é porque rolou o impacto sim. Você não concorda?

Bom, então vamos brincar assim. Vamos brincar que eu te digo as coisas que nunca diria se não estivéssemos bêbados assim, melhor ainda, que eu digo as coisas que eu não diria nem se estivesse assim. Vou me arrepender, certeza. Talvez até apagar antes. Mas...tá, sim. Mais uma cerveja?

Não sei como foi, nem se foi. Mas foi assim. A gente se viu, e eu não vi nada demais. Ou vi e não quis ver, sei lá. Alguém lá sabe? Sei que eu fui embora, e nem pensei, e acho que nem você. Mas depois, pensei em você. Mas depois era depois, você era nunca, e eu, como sempre, era quase.

Aí depois a gente se falou, não sei por quê. E eu gostei, nem sei do quê. Aí eu vi umas coisas de você, mas nem fiz caso, vi coisas que você fez, e, por acaso, te admirei. E vi mais coisas, e te mirei mais. Um dia você me chamou, e eu gostei porque te procurava sem admitir. Eu queria estar perto de você, mas sem mentir. Queria fazer parte de alguma coisa sua, mas sem invadir, eu queria que você quisesse. Mas depois desisti, porque eu sou sempre assim. Eu paro no quase, nada assim tão ruim, e você, como tudo o que pudesse ser bom, por isso mesmo, já era nunca, já era fim.

Aí você me chamou de novo, e eu gostei mais, porque já quase admitia, mas não acreditava, nem queria. Eu, que ria, queimava, ardia, amava já uma projeção que esbarrava num muro que eu mesmo construía.

Mas talvez fosse você que se ria. Mais de uma vez (e mesmo agora) eu pensei em como seria. Se fosse, ou se...se fosse você. Se a gente se visse mais, se desse certo. Se a gente saísse, e, de perto, fosse assim natural, o olhar, o toque, a química, alguma mímica que a gente inventasse, devagar, um choque não sei em que lugar, alguma rítmica, cadência que a gente encontrasse, e que soubesse ser só da gente, e que urgente viesse uma paciência que nos fizesse aceitar o tempo que fosse durar.

Aí eu quis você, fiz uma você do meu lado. A gente já íntimo, eu já calado, você deitada na minha cama num domingo, a gente rindo de um filme qualquer na TV. E eu te via já quase todo dia. Eu já gostava da tua mão, eu não pensava mais em nada, você já era acostumada comigo. Não havia mais perigo, você sabia dos meus vícios, todos os nossos sacrifícios já eram passado, era paz o que havíamos encontrado. Eu gostava do seu cheiro, você conhecia meu corpo inteiro, eu sabia de cór suas tatuagens, minhas manias eram quase bobagem, as suas eu nem ligava, eram uma bagagem que você trazia e eu acolhia, aceitava. Na hora da cama, eu não tinha mais medo, nada era segredo, tudo pintava direito e a gente aproveitava.

Eu gostava do seu rosto, do seu gosto de manhã, você se aninhava no meu colo, no meu peito, a gente logo encontrava um jeito, um gesto, uma calma.

E é isso. E era assim. E então isso fica assim. Isso fica entre nós, e morre aqui. E amanhã, quando a gente acordar de ressaca, não vamos lembrar de nada com clareza. Saca? A gente nunca vai ter certeza. Nunca vai saber o que de fato aconteceu. Você vai até achar que quem falou isso tudo foi você, e não eu. Não é uma beleza? A gente nem vai se arrepender. Mas...tá. Mais uma cerveja?

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Da Inércia

O sol fura o céu nublado, que chove a mesma chuva intermitente, já há dias a fio. O sol atravessa a janela e pousa nas mãos sobre o teclado, tamborilando, inconsciente gesto frio. Os dedos de Edgar param de repente.

Quer ir embora. Não pra casa, a louça repousando na pia, a nuvem de tédio parada nos cômodos, os modos contidos da vida em prédio, o inevitável incômodo confortável. Nem pra qualquer outro lugar, vertigem de gente, qualquer um é multidão. Nem mulher, nem bar, nenhuma alegria urgente, toda euforia é confusão. Quando tudo o que se quer é ir embora, não existe lugar nenhum.

Os olhos de Edgar se detêm no monitor, e o atravessam. A janela ao seu lado treme com o movimento do trânsito que se intensifica. Todo o pessoal do escritório já foi embora, Edgar fica. Abre a janela do Messenger, mas sabe que ninguém ali o interessa. Quando tudo o que se quer é ir embora, tudo é espera, tudo é pressa. Desliga o computador, apanha a mochila da cadeira, desliga o interruptor, a sala inteira escurece, esquece uma janela aberta, volta, fecha, caminha na escuridão pelo corredor. Tranca a sala, chama o elevador, e impaciente, espera. Se alegra, sem nenhum motivo aparente, porque é quinta feira.

A porta se abre no quinto andar, Edgar amaldiçoa em silêncio, odeia dividir elevador. Vertigem de gente, qualquer um é multidão. Entram uma gorda vestida de branco e um senhor, Edgar balbucia uma saudação, e se odeia porque não tem controle sobre seu tom de voz em situações assim. Retesado, olha pra baixo, olha para as mãos, se olha no o espelho da parede do fundo do elevador, desvia rápido o olhar porque não quer que pensem que ele se preocupa demais com a aparência, ele não é desses, e ele sabe que não é, mas também sabe que provavelmente se olharia no espelho durante toda a descida se estivesse sozinho naquele elevador. E por ficar pensando nisso tudo, os poucos segundos da descida lhe parecem intermináveis, mas finalmente o elevador para no térreo, e Edgar segura a porta para que os dois saiam e lhes diz boa noite, com um sorriso que, embora fabricado e usado várias vezes, sempre lhe será incômodo.

Desce até o subsolo e brinca com os manobristas, fala sobre futebol, afinal é pra isso que ele lê o caderno de esportes no jornal, pela internet, todas as manhãs. Sente algum enfado, mas se alegra por participar desse pequeno universo coletivo. Além do mais, sabe que é uma atitude sábia ganhar a simpatia dos manobristas, para que tratem seu carro com mais cuidado do que os dos clientes comuns.

O carro de Edgar se mistura a esta enchente metálica que transborda todos os dias, e nem percebe mais o caminho. Os carros não são gente. Os carros são máquinas com vida e comportamento próprios. Disputam o mesmo espaço que não existe, lataria de hostilidade sobre carcaça de pressa infundada. Submergem numa alcatéia que rosna, e a qualquer interrupção todos berram, urram, guincham, os uivos de nossos ancestrais deram lugar a isso, a bestialidade ficou mais confortável e cercada de insulfilm. A miséria lá fora não existe, amenizada com punhados de moedas entregues com expressões condescendentes, a miséria de dentro é maquiada com música ruim, e todo o ar se condiciona. As últimas gretas são preenchidas por motos, o mal produzido por outra máquina, a da urgência, conveniência, inventadas necessidades. Incomoda a Edgar que a primeira reação natural ao próximo seja hostil, mas nos dias em que ele não abraça tanto sua hipocrisia, ele sabe que é dele que parte a primeira hostilidade. Em seus dias bons, ele também sabe que nem toda hostilidade é recíproca.

Um maço de cigarros de menta repousa esquecido no porta-objetos da porta do motorista. Edgar os olha e por um segundo se pergunta como é que foram parar lá. Não é a marca que ele fuma, e ele nunca fumaria um cigarro de menta. Edgar sabe que, secretamente, ou mesmo sem perceber, a marca de cigarro que se fuma te coloca em uma categoria. Se é julgado por isso, e ele definitivamente nunca quis ser alguém que fuma cigarro com sabor. A chuva para novamente, e parado no trânsito, Edgar se lembra que aquele maço era dela. Uma mulher que só fumava quando saía com ele, ela dizia, e ela disse também que tinha experimentado aquele cigarro e gostado. Edgar não gosta de ter sido obrigado a lembrar disso desse jeito, de forma abrupta, e retoma o controle de sua linha de pensamento, para evitar fazer o cálculo de há quanto tempo aquele maço está ali. Olha para o porta-objetos em frente ao freio de mão, onde está o seu maço de cigarros, da marca escolhida por ele, à qual seu paladar e dedos estão acostumados, e que todos sabem que é o cigarro que ele fuma. Ele se lembra que ela não gostava daquela marca, e por isso, sempre que ele a pegava em casa para saírem, ela pedia para pararem em algum lugar pra comprar cigarros. Pensando nisso, ele pega seu maço e seu isqueiro bic pequeno na mão, mas hesita. Se irrita consigo mesmo por deixar uma bobagem daquelas interferir num gesto tão pequeno e maquinal, e os coloca de volta no compartimento. O tráfego volta a andar e Edgar pega um cigarro de menta, não para se lembrar, mas para exercitar a indiferença. Estranha o tamanho, mais fino e longo que o seu, mas o sabor não lhe desagrada, afinal. Abre uma fresta do vidro da janela e abaixa o volume do rádio, não gosta que outras pessoas saibam o que ele está ouvindo.

O portão automático da garagem do prédio se levanta, Edgar cumprimenta o porteiro erguendo a mão, e acelera seu carro por entre as colunas do estacionamento acima da velocidade permitida pelas normas do condomínio, de propósito. Edgar não quer que a idade o faça perder o prazer das transgressões mínimas, e evita pensar no ridículo disto tudo.

A porta do elevador se abre, e ao entrar, Edgar sente cheiro de perfume, resíduo de alguém que acabara de sair. O elevador passa pelo térreo sem parar, e Edgar se sente aliviado por não ter que dividir espaço com ninguém, vertigem.

Abre a porta de seu apartamento ouvindo o labrador da vizinha latir, mas não quer se irritar, porque a vizinha é cega. A mochila é jogada no sofá, e sobre a mesa da sala ficam a carteira, as chaves, o documento do carro, o celular e o maço de cigarros. Vai até o quarto, tira o tênis e a camisa, suspira. Abre a janela, e lá fora, o tempo lhe parece suspenso. Quando tudo o que se quer é ir embora, tudo é demora e paciência.

Vai até a cozinha, o chão está escorregadio de gordura e sente preguiça antecipada porque sabe que vai ter de limpar, abre a geladeira, constata que se quiser comer alguma coisa, vai ter que cozinhar, então pega uma lata de cerveja, pega um cigarro do maço sobre a mesa da sala e vai para a sacada. Olha os carros na avenida. Em uma das sacadas do prédio em frente há um senhor fumando, e Edgar percebe nele uma postura resignada, pensa que talvez sua esposa não o deixe fumar dentro de casa. Os olhares dos dois se encontram, e se demoram por uma fração de segundo até que o senhor o cumprimenta dobrando os lábios pra dentro num semi sorriso e com um movimento de cabeça, gesto que Edgar repete da mesma forma, e ambos desviam o olhar. Numa outra sacada, um gato gordo está deitado sobre o parapeito, e em outra se pode ver um casal assistindo TV no sofá.

Edgar volta pra sala, se senta no sofá, olha pra TV desligada e pondera. Se levanta apressado, vai até o quarto, calça os tênis, veste uma camisa limpa, apanha a carteira, as chaves, o documento do carro, o celular e o maço de cigarros na mesa da sala, apaga todas as luzes, menos a da sacada. Caminha na escuridão pelo corredor. Tranca a porta, chama o elevador, que demora. Dessa vez não ouve o labrador da vizinha cega. Quando tudo o que se quer é ir embora, sempre se sabe que nunca se chega.

sábado, 14 de março de 2009

Das sugestões serenas, isentas e fiéis

"All I want is a room with a view. A sight worth seeing. (...)
A small remembrance of something more solid"
Blondie - Picture This


Edgar acorda de um cochilo e se lembra que é sábado. Olha pro relógio no criado mudo, e vê que são quase oito e meia da noite. Tem sono ainda, seu corpo ainda está impregnado de torpor, olha em volta do quarto escuro, e se deita de barriga pra cima, descobrindo-se atirando a colcha no chão. Quer se levantar, não quer perder tempo, mas não tem o que fazer. Presta atenção pra ver se tem alguma necessidade. Não. Nem fome, nem vontade de ir ao banheiro, nem vontade de sair, nem vontade de fazer qualquer coisa especificamente. Mas é sábado e não quer mais ficar dormindo em seu único dia realmente livre. Consulta sua mente pra ver se tem algo que precisa ser feito, e não pensa em nada urgente ou possível a esta hora. Reúne forças e se senta na cama, virando de lado e colocando os pés no chão. Esfrega as mãos no rosto e se levanta. Abre a janela, não gosta do cheiro viciado de gente dormida. O céu já está escuro, está quente e não chove. Tampouco venta. Caminha até a porta, tropeçando nas coisas no chão, que não se lembra o que são. Sai do quarto, a casa está toda escura. Vai até o banheiro, acende a luz, que lhe fere os olhos, abaixa a cabeça por alguns instantes, para que seus olhos se acostumem. Se olha no espelho, arregala os olhos, franze a testa, arqueia as sobrancelhas, abre a boca o máximo que pode, quer acordar seus músculos, passa as mãos pelos lados da cabeça, deixando seus cabelos ainda mais bagunçados. Lava o rosto e assua o nariz na pia, se olha no espelho uma outra vez e pensa que precisa fazer a barba, mas deixa pro domingo. Se enxuga e urina tentando manter o jato no centro do vaso, sem pingar fora.

Caminha pela casa, vai até a cozinha, para e pensa no que quer ou deve fazer. Bebe água. Pega um copo, enche até a metade de café morno, feito pela manhã, esquece de colocar açúcar, dá o primeiro gole, faz uma careta e vira tudo de uma vez. Deixa o copo na pia e volta para o quarto. Deita na cama, liga a TV e acende um cigarro. Vaga pelos canais sem nada que lhe interesse. Desliga a TV e pega o notebook. Ainda não sabe o que quer fazer. Volta pra cozinha, abre a geladeira, pega a garrafa de sakê e enche meio copo. Volta pra cama, põe o notebook no colo. Percebe que não está com disposição para nada. Quer criar algo inovador e definitivo, mas não sabe de onde tirar forças para tanto, e, no entanto, ainda evita duvidar. Fica parado, com as mãos inertes sobre o teclado, a tela do Word em branco, o prompt pulsando, exigindo algo, seu piscar constante e ritmado é quase como um julgamento, insuportável.

De repente, em meio ao quase silêncio da cidade lá fora, uma cigarra começa a cantar. Edgar se surpreende, há quanto tempo não ouvia este ruído. Pensa e crê que nunca o tinha ouvido em sua cidade. Sorri inadvertidamente, ergue seu olhar para o nada, e saboreia o canto do inseto, onde quer que ele esteja. Imóvel, escuta até o final, até que o canto vai se tornando mais estridente, descompassado, diminuindo até desaparecer. Não pensa em nada por alguns segundos, até que suspira, sorri outra vez e resigna-se. Nada será dito esta noite.